‘Uma Noite em Miami…’ faz pensar, emociona, ensina e sacode

Jim Brown, Malcolm X, Sam Cooke e Muhammad Ali nas peles dos atores Aldis Hodge, Kingsley Ben-Adir, Leslie Odom Jr. e Eli Goree, no filme "Uma Noite em Miami..."
Jim Brown, Malcolm X, Sam Cooke e Muhammad Ali nas peles dos atores Aldis Hodge, Kingsley Ben-Adir, Leslie Odom Jr. e Eli Goree, no filme "Uma Noite em Miami..."

Vale a pena ver na Prime Video: UMA NOITE EM MIAMI… (One Night in Miami…)
Nota 9

Como eu disse no post de ontem, muitos leitores do blog acompanham as resenhas que eu faço de filmes do Oscar e às vezes usam a listinha como dica do que assistir ao longo do ano todo – o que muito me lisonjeia.

Pensando nesses leitores, resolvi aproveitar o fim de semana para assistir a alguns filmes de Oscars passados que eu tinha deixado pendentes. E escolhi este excelente, que concorreu a três estatuetas na edição de 2021, ano em que o insosso “Nomadland” venceu.

(É curioso como, naquele ano, havia inúmeros filmes maravilhosos abordando a questão do racismo, mas o que levou o maior prêmio da noite foi este grande NADA de Frances McDormand vivendo como nômade.

Só pra lembrar, tivemos:

E ainda tínhamos O Som do Silêncio, falando sobre inclusão, Bela Vingança, sobre o abuso contra mulheres, Meu Pai, sobre velhice e demência, Minari, sobre imigração – qualquer um deles bem melhor que Nomadland.

Mas, deixa, não vou ficar chorando por um leite derramado há dois anos. Vocês vieram aqui ler sobre “Uma Noite em Miami…” e não sobre as más escolhas da academia.)

O que posso dizer sobre esse filme?

Temos aqui quatro monstros em suas respectivas áreas: Muhammad Ali, Malcolm X, Sam Cooke e Jim Brown.

Jim Brown, Malcolm X, Sam Cooke e Muhammad Ali nas peles dos atores Aldis Hodge, Kingsley Ben-Adir, Leslie Odom Jr. e Eli Goree, no filme "Uma Noite em Miami..."
Jim Brown, Malcolm X, Sam Cooke e Muhammad Ali nas peles dos atores Aldis Hodge, Kingsley Ben-Adir, Leslie Odom Jr. e Eli Goree, no filme “Uma Noite em Miami…”

O que eles têm em comum, além de serem amigos, é que eram negros. E Malcolm X queria que usassem sua influência em suas respectivas áreas para lutar contra o racismo. Para se tornarem armas contra o que ainda, absurdamente, acontecia de forma escancarada há apenas 60 anos.

O filme, baseado numa peça de teatro, imagina como se deu uma reunião entre essas quatro figuras icônicas numa noite histórica, em 1964, em que o pugilista se tornou campeão mundial de boxe peso-pesado com apenas 22 anos de idade.

É ficção, porque não há nenhum registro fotográfico ou mesmo testemunho daquela reunião noturna, então todas as conversas são absolutamente imaginadas – mas “inspirado em fatos reais”, porque muita coisa mostrada ali aconteceu de verdade.

Ao longo de duas horas, ficamos a maior parte do tempo fechados em um quarto de hotel junto aos quatro personagens, ouvindo a conversa imaginada que eles podem ter tido.

O que segura esse tipo de filme, em que há pouca mudança de cenário e muito diálogo, são duas coisas principais: as atuações e o roteiro.

E temos, aqui, estas duas coisas em forma impecável. Tanto que, das três indicações ao Oscar que o filme levou, uma é pelo roteiro adaptado e a outra é pela atuação excepcional de Leslie Odom Jr., que interpreta Sam Cooke – e canta lindamente também.

Ah, e a terceira foi pela canção original “Speak Now”, composta também pelo talentoso Leslie:

Outros filmes que usaram a mesma fórmula não foram tão bem-sucedidos. O próprio “A Voz Suprema do Blues” me frustrou em alguns aspectos e, por isso, dei a nota 7 para ele. “Um Limite Entre Nós“, que também são diálogos de dois personagens dentro de uma casa, eu achei péssimo. Já “12 Homens e Uma Sentença” e “Deus da Carnificina” são outros excelentes exemplos de filmes que se passam em um mesmo ambiente.

Enfim, hoje estou divagando mais que o normal. Como eu ia dizendo, as atuações neste “Uma Noite em Miami…” estão muito boas. E não só do intérprete de Sam Cooke, mas também do perfeito Malcolm X que está na pele de Kingsley Ben-Adir e as atuações de Eli Goree (Cassius Clay) e Aldis Hodge (Jim Brown).

Os quatro encarnam seus personagens de tal forma que a gente sente a sintonia e, ao mesmo tempo, a tensão que paira entre eles como se estivéssemos testemunhando um fato histórico, bem diante de nosso nariz. São amigos, mas em um momento de reflexão difícil, com troca dura de palavras.

E o roteiro é inteligente e bem feito, ao conseguir nos apresentar os fatos sempre em forma de diálogos, de forma clara sem parecer forçada, em conversas perfeitamente naturais e verossímeis.

Não, você não fica entediado. Algumas frases funcionam como socos na nossa cara. Por outro lado, nada é simples. Não temos ali um dono da verdade (embora eu tende a concordar com tudo o que Malcolm X diz no filme). Eles se contrapõem de forma muito inteligente e lógica, todos os argumentos são bons.

Esse filme nos faz lembrar que não é porque somos amigos de uma pessoa que devemos evitar conflito a todo custo com ela: pelo contrário, às vezes, justamente por admirar alguém, devemos sacudi-la quando ela está fazendo uma coisa idiota; ajudá-la a entrar de volta nos trilhos da ética, dos valores que sempre a guiaram, ou do que precisa ser defendido a todo custo, por ser o mais humano.

Nesses tempos em que vemos familiares queridos abduzidos pela lavagem cerebral desta grande seita religiosa fanática que se tornou a extrema-direita do Brasil, é importante pôr às claras para eles que estão falando ou fazendo coisas absurdas, que isso não é manifestação, é golpe, que ditadura militar não é uma coisa defensável, muito menos o nazismo, e assim por diante.

Mas cá estou eu digredindo de novo.

Cena do filme 'Uma Noite em Miami', que se passa praticamente todo dentro de um quarto de hotel.
Cena do filme ‘Uma Noite em Miami’, que se passa praticamente todo dentro de um quarto de hotel.

No caso do filme, estamos falando de negros ainda impedidos de frequentar lugares junto com brancos, em pleno ano de 1964!

Uma das cenas mais fortes do filme é quando Malcolm X diz, a plenos pulmões: “Os negros estão morrendo nas ruas!” E depois: “O movimento ao qual pertencemos é uma luta. Porque estamos lutando pelas nossas vidas!

Enfim, é um filme que faz pensar, que emociona, que ensina, que sacode também.

O ativista foi assassinado muito pouco tempo depois dessa reunião semifictícia com os três amigos em uma noite em Miami. Mas suas ideias foram semeadas, não só entre eles, mas também por muitas outras pessoas – até chegarmos a um presidente negro nos Estados Unidos em 2009. Mas depois, em 2020, tivemos a morte de George Floyd. Mas aí veio a resposta, com o Black Lives Matter e a volta dos punhos cerrados.

É esta história cíclica, que a gente está vivendo pra ver cada vez mais rápido, né? De Obama ao radical de extrema-direita Donald Trump. Do impeachment sem fundamento de Dilma ao fascista Jair Bolsonaro, e agora de volta a Lula, que está cada vez mais ao centro do que à esquerda, pra tentar sobreviver no cenário político atual.

Há ainda uma longa jornada a percorrer até que o mundo se livre de assassinatos ou crueldades cometidas contra outras pessoas apenas por serem pretas ou pobres ou nordestinas – ou mulheres ou gays ou petistas ou vulneráveis de alguma maneira.

Uma longa jornada até que todas as pessoas entendam que minorias não devem se curvar a maiorias, como disse Bolsonaro (ou Hitler?), que as sociedades precisam ser menos desiguais, mais justas, e que as minorias devem ser respeitadas e protegidas.

Uma imensa jornada até que a população preta consiga se livrar dos estigmas causados por anos de escravidão, de abusos de toda sorte, políticos, econômicos, sociais, e possa ser compensada por esses abusos e alcançar o mesmo patamar que os brancos em termos de oportunidades e de liberdades.

E precisaremos de muitos Malcolm X, Muhammad Ali, Sam Cooke e Jim Brown no meio dessas jornadas, pra ajudar a lutar contra o racismo, fortalecidos por sua influência e até “heroísmo” em suas respectivas áreas de atuação.

Mas cada um deles fará muita diferença.

E aí, quem sabe, algum dia, “a change is gonna come” – uma mudança chegue para todos nós deste planeta.

Com este sentimento de esperança e otimismo, encerro o post ao som desta linda canção de Sam Cooke, na bela voz de Leslie Odom Jr.:

Assista ao trailer oficial de “Uma Noite em Miami…”:

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Por Cristina Moreno de Castro (kikacastro)

Mineira de Beagá, jornalista (passagem por Folha de S.Paulo, g1 e TV Globo, UOL, O Tempo etc), blogueira há 20 anos, amante dos livros, poeta, cinéfila, blueseira, atleticana, politizada, otimista, aprendendo desde 2015 a ser a melhor mãe do mundo para o Luiz. Antirracista e antifascista.

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