Livro ‘Véspera’, de Carla Madeira: tudo o que antecede o descontrole

vulcão, lava, derramamento. Detalhe de imagem que aparece na capa do livro Véspera, de Carla Madeira
Imagem na capa do livro "Véspera", de Carla Madeira

Quando escrevi, há uns meses, o post Breves Reflexões sobre o Caráter, uma amiga falou que achava que, para além de “nascer” com determinado caráter, tinha o fator “criação” e “ambiente” na formação das pessoas. Eu argumentei: mas e os irmãos que são criados na mesmíssima casa, com os mesmos pais, do mesmo jeito, estudam na mesma escola e têm personalidades ao avesso?

Este livro de Carla Madeira parece ter sido feito para ilustrar esta ideia. Temos aqui dois irmãos gêmeos, batizados, por um desses desastres da vida, de Caim e Abel.

Eles são idênticos por fora, mas opostos em todo o resto. Mesmo tendo sido criados pelos mesmos pais, na mesma casa, estudado na mesma escola e tido as mesmas oportunidades (com uma mãe que até se esforçou além da conta por isso), um deles chega a ser inverossímil de tão perfeito e o outro é um dos personagens mais abjetos que já conheci na literatura.

Ao contrário do que aconteceu no livro “Tudo é Rio”, o primeiro sucesso retumbante da escritora mineira, eu não senti nem um pingo de empatia por este personagem-vilão. Nem em sua mais tenra idade. Ele é sempre fraco ou cruel ou só asqueroso mesmo. Muitas vezes seu comportamento chega a ser patológico. Não à toa a violência está em tudo ao seu redor, em vários graus e momentos de sua vida.

O livro começa com uma violência dessas, que a gente custa a entender. É o capítulo 1, em que somos apresentados a Vedina e o menino Augusto. E este capítulo já nos causa dor. É um socão no estômago, daqueles bem desferidos, como Carla Madeira já tinha feito no livro que li antes.

Depois, em vez do capítulo 2, somos transportados direto para o capítulo 18. Que conta uma história paralela. E assim o livro vai seguindo, numa narrativa original desde a numeração, intercalando um passado recente, que segue cronológico – 1, 2, 3, 4… –, a um passado bem mais remoto, que vai regredindo: 18, 17, 16… E essas contagens regressivas nos preparam para o momento em que as duas histórias, depois de uma costura cuidadosa, vão se encontrar.

É a véspera da véspera da véspera, que tenta explicar o momento em que alguém comete um absurdo inimaginável. Ou, como diz a voz que abre o livro no prefácio, no “antes do começo”: “A descida até o lugar onde somos capazes de tudo é, por vezes, um desmoronamento lento misturado à banalidade dos dias. Ou abrupta avalanche”.

Quando é que perdemos o controle de tudo e estragamos nossas vidas para sempre?

O livro tenta responder a esta pergunta, que certamente passou pela cabeça de Vedina. E passa nas nossas cabeças de leitores, tentando uma fagulha de compreensão diante do que ela fez.

Não sei se consegue. O final de tudo, surpreendente, mas nem tanto, nos deixa ainda com aquela marca do soco levado logo no início, como um roxo no olho que não passa nunca.

(Sugiro a Carla Madeira dar sequência à história, nos contando a véspera da véspera da véspera que justificaria aquela escolha final.)

A autora, mais uma vez, nos presenteia com um texto fluido, bem escrito até falar chega (só achei os pontos de exclamação meio excessivos; eu cortaria metade deles). Mas não é um texto fácil de ler, pelo contrário: o tema deste livro é ainda mais pesado que em “Tudo é Rio” (é difícil não comparar os dois). A gente termina a leitura sem esperança.

Não digo que seja difícil a leitura por ser custosa: não, a gente devora tudo rapidinho, porque Carla Madeira faz isso conosco. Mas cada capítulo é uma paulada nova.

Por isso, não recomendo “Véspera” para se ler em qualquer fase da vida, não. Você tem que estar muito bem para suportar tanta dor alheia. E, ainda assim, prepare-se para chorar algumas vezes. Mas uma coisa te prometo: você vai terminar carregando algumas novas reflexões.

“Se nos quisesse perfeitos nos fizesse perfeitos”. Faz sentido.

 

Capa do livro 'Véspera', de Carla Madeira.

“Véspera”
Carla Madeira
Ed. Record
276 páginas
R$ 43,37 na Amazon

 

 

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Por Cristina Moreno de Castro (kikacastro)

Mineira de Beagá, jornalista (passagem por Folha de S.Paulo, g1 e TV Globo, UOL, O Tempo etc), blogueira há 20 anos, amante dos livros, poeta, cinéfila, blueseira, atleticana, politizada, otimista, aprendendo desde 2015 a ser a melhor mãe do mundo para o Luiz. Antirracista e antifascista.

4 comentários

  1. Algumas coisas n ficaram claras p mim. O Abel era sociopata? Ele derrubou o Parede?? O menino Augusto foi ” resgatado” e criado por um estranho????

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