Tetralogia napolitana de Elena Ferrante: terminamos, exauridos, sem conseguir parar de ler

Tetralogia napolitana de Elena Ferrante: A Amiga Genial, História do Novo Sobrenome, História de quem foge e de quem fica, História da menina perdida.
Tetralogia napolitana de Elena Ferrante: A Amiga Genial, História do Novo Sobrenome, História de quem foge e de quem fica, História da menina perdida.

 

Não é fácil escrever uma resenha sobre a aclamada tetralogia napolitana de Elena Ferrante.

Primeiro porque, enquanto percorremos as quase 1.700 páginas dos quatro volumes, temos alguns momentos de angústia, de sentimentos ruins diversos, muitas vezes gerados pela protagonista nada carismática – a Lila – e sua amiga completamente obcecada por ela – a Lenu.

Muitos diriam, inclusive, que Lenu, ou Elena Greco, a narradora da história, é a protagonista. Mas não: em todos os momentos, mesmo quando ela está falando de alguma coisa que nada tem a ver com a amiga, ela dá um jeito de inserir Lila na história.

Só agora, depois de ler todos os quatro volumes, fui reler aquele inicinho e me dei conta de como Lenu resolve começar a contar a história da amiga, logo na quinta página:

 

“Vamos ver quem ganha desta vez, disse a mim mesma. Liguei o computador e comecei a escrever cada detalhe de nossa história, tudo o que me ficou na memória.”

Vamos ver quem ganha desta vez.

Boa parte dessa história é sobre esta disputa, consciente ou não, entre as duas amigas. E é em torno dela que todo o resto se constrói.

Essa obsessão com Lila me incomodou muito, em vários momentos. A impressão que eu tive é que Lenu não consegue viver sem pensar na amiga nem por um minuto: seja para disputar com ela, para tentar agradá-la, para invejá-la, para ter ciúmes dela, para guardar rancor, para querer ajudá-la, para se preocupar com ela, para ter carinho, para temê-la, para pensar no que ela está pensando, para tentar imaginar o que ela pode estar tramando, e assim por diante.

Isso é amor ou amizade tóxica?

E, como eu disse, achei Lila uma das personagens menos carismáticas da literatura. Egoísta, inquieta, áspera, sórdida. Claro que ela também tem sua genialidade e tem vários momentos de desprendimento, de doçura e de cuidado com os outros. Claro que ela é vítima em vários momentos também, e nos dá pena por isso. Vítima de violência doméstica (do pai, do irmão, do marido, do patrão… são tantos homens abusivos e absurdos que cruzam seu caminho!). De exploração. De humilhações sem fim.

Mas ela também é uma das palavras que Elena Ferrante mais gosta de usar: pérfida. Se alguém tiver a versão digital desse livro, faz favor de dar um Ctrl+F e buscar quantas vezes a palavra “pérfida” ou  “pérfido” aparece, e me conta. (Busquem também por “escandir”, outra que a autora usa muito. Parece que ela gosta de repetir determinados vocábulos).

Quem leu até aqui deve ter pensado que eu detestei os livros. Afinal, as personagens são loucas e obcecadas, a narrativa incomoda, as palavras se repetem… E olha que nem falei ainda do conteúdo! Tem um trechinho, já no fim do último volume, que diz assim:

 

“(…) sempre havia algo de horrível, de disforme, que em seguida ganhava os contornos de um belo edifício, de uma rua, de um monumento, para depois perder memória e sentido, piorar, melhorar, piorar, segundo um fluxo imprevisível por natureza, todo feito de ondas, calmaria, reviravoltas e cascatas.”

Ela estava se referindo, aí, a Nápoles – cidade italiana onde se passa 90% da tetralogia, embora também apareçam Florença, Gênova, Milão e Turim. Mas também poderia estar se referindo à narrativa da tetralogia, com suas ondas, suas reviravoltas, o vaivém de coisas boas e ruins que muitos vezes se repetem, embora em graus diferentes.

Fiquei pensando se, talvez, ela tivesse editado melhor a história, condensado aquelas vidas, ao longo de 60 anos, em um livro só, se não teria rendido uma versão feminina e feminista do maravilhoso “O Encontro Marcado“, com menos risco de tantas repetições.

Mas não: Ferrante preferiu escrever à exaustão, deixando-nos meio exauridas de tantas vidas, de tantas Lilas e Lenus, de tantos personagens tão cheios de fúria, de miséria, de violência.

Terminamos as quase 1.700 páginas inseridos de verdade naquela Nápoles e como que velhos conhecidos de Pasquale, Nádia, Antônio, Carmen, Gigliola, Ada, dos Solara, de Elisa, Nunzia, Imma, Fernando, Rino, Gennaro, de Pietro e Nino, de Marisa, Alfonso, Stefano, de Enzo, de Mariarosa e os demais Airota.

Somos embebidos nesses sessenta anos de história, que perpassa também a História da Itália, com seus problemas políticos, com as guerras civis entre comunistas e fascistas, com o terremoto devastador. E, assim como no livro de Fernando Sabino, temos também uma narradora escritora, que passa boa parte das páginas tratando das dificuldades de escrever. Mas que trata ainda da maternidade nua e crua, dos casamentos, das paixões burras e avassaladoras, das relações familiares, do luto, da miséria.

São muito assuntos em muitas páginas pouco editadas, e em parágrafos muitas vezes longos demais, sem quebras para nos permitir respirar. E, mesmo assim, lemos tudo, vorazmente. Li mais da metade em plenas férias. Por quê? Porque o texto de Ferrante é fluido, é fácil. E porque esses personagens, mesmo os mais estúpidos, os menos carismáticos, nos absorvem.

 

“Somente nos romances ruins as pessoas sempre pensam a coisa certa, sempre dizem a coisa certa, todo efeito tem sua causa, há os simpáticos e os antipáticos, os bons e os maus, tudo no fim nos consola”.

O trecho acima já está também quase no fim da tetralogia e vem junto com uma das verborragias de Lila. Mas parece mais ser Ferrante se justificando: “Viram só? Meu romance não é ruim, porque é assim mesmo que o construí, sem essas certezas todas”.

E o pior é que ela tem razão. Assim como na vida, não é mesmo? Ninguém é totalmente bom ou mau. Não há só o bonito e o feio. As pessoas são esta confusão impossível de milhares de sentimentos divergentes. Por isso odiamos um personagem como o Michele Solara – que é um agiota gângster violento e abusivo – e termos empatia com ele em algum ponto da história. Até os monstros escondem bondade e os santos guardam monstruosidades.

Esta tetralogia nos pega pelo pescoço por isso. A gente começa a ler e quer logo saber mais sobre aquela personagem inusitada que resolve desaparecer sem deixar vestígio. E vamos seguindo, amarrados, incapazes de parar antes do fim, para saber o que acontece com ela e com todos os demais. Os monstros-santos e os santos-monstros.

 

A Amiga Genial / História do Novo Sobrenome / História de quem foge e de quem fica / História da menina perdida
Elena Ferrante
Ed. Globo
1.693 págs (ao todo).
R$ 167


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Por Cristina Moreno de Castro (kikacastro)

Mineira de Beagá, jornalista (passagem por Folha de S.Paulo, g1 e TV Globo, UOL, O Tempo etc), blogueira há 20 anos, amante dos livros, poeta, cinéfila, blueseira, atleticana, politizada, otimista, aprendendo desde 2015 a ser a melhor mãe do mundo para o Luiz. Antirracista e antifascista.

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