Falta muito mais que um Ministério da Cultura no Brasil

Texto escrito por José de Souza Castro:

O Brasil era um dos 59 países relacionados pela Wikipédia que têm um Ministério da Cultura. Agora, com o governo interino de Michel Temer, se juntou à maioria dos que não os tem – entre eles, os Estados Unidos.

Os franceses, ao contrário dos estadunidenses, não devem estar entendendo a estratégia de Temer. Os artistas brasileiros que escolheram o Festival de Cannes para protestar contra o golpe não poderiam ter escolhido um local mais receptivo.

André Malraux e Charles de Gaulle. Foto: Foundation André Malraux
André Malraux e Charles de Gaulle. Foto: Foundation André Malraux

O Ministério da Cultura da França foi criado em 1959 pelo general Charles de Gaulle, que convidou um amigo, o escritor e militante da resistência ao nazismo André Malraux, para ser o primeiro ministro. O presidente francês tinha a estatura de um estadista; e o ministro da Cultura, o bastante para tornar o novo ministério respeitável. Malraux venceu em 1933 o Goncourt, o mais importante prêmio literário da França, com a obra “La Condition humaine”. Só deixou o ministério em junho de 1969, sete anos antes de morrer, aos 75 anos. Foi enterrado no Panteão de Paris, local destinado a personalidades notáveis da França. Uma de suas frases: “Toda arte é uma revolta contra o destino do homem”.

No ano 2000, o presidente François Mitterrand escolheu um político, Jack Lang, para ministro da Cultura. Ele popularizou o ministério, como fizeram no Brasil os governos petistas. Incentivou a produção cultural popular, incluindo o jazz, rock and roll, rap, a arte de grafite moderna, cartoons, comic books, moda e alimentos, como leio na Wikipédia: Sua famosa frase “économie et culture, même combat” (“economia e cultura: são as mesmas lutas”) representa seu compromisso com a democracia cultural, o patrocínio nacional e a participação ativa na produção cultural. Para além da criação da Fête de la musique, supervisionou o bicentenário da França em 1989. Lang estava no comando do programa arquitetônico maciço da era Mitterrand (a chamada “Grands Travaux” ou “Grandes Obras”, como a Biblioteca Nacional da França, o novo Museu do Louvre, o Instituto do Mundo Árabe, o Museu de Orsay, a Ópera da Bastilha, o “Grande Arco de la Défense” (no centro financeiro da cidade de Paris) e a Cidade de Ciência e Música no Parc de la Villette).

Jacques Toubon, sucessor de Lang, se esforçou por preservar outro monumento cultural: a língua francesa. Elaborou lei determinando que todos os anúncios que tiverem palavras estrangeiras devem incluir a tradução em francês. Outra obrigava as emissoras de rádio a programar 80% das músicas tocadas em francês.

Algo impensável no Brasil atual de Temer, em que a maioria de seus apoiadores é constituída também por políticos concessionários de rádio e televisão – e, neles, ninguém tasca!

Fleur Pellerin, ministra da Cultura na França. Foto: Wikimedia
Fleur Pellerin, ministra da Cultura na França. Foto: Wikimedia

Ah, sim: o Ministério da Cultura francês é dirigido por uma mulher, Fleur Pellerin, desde 26 de agosto de 2014.

Sob todos os aspectos, não se pode comparar as estaturas de Charles de Gaulle e Michel Temer. Que dirá a do secretário de Cultura escolhido por este, após tentativas frustradas de cooptar alguma artista notável para o cargo, como Malraux. O advogado Marcelo Calero, 33 anos, bacharel em Direito e diplomata de carreira, foi nomeado em fevereiro de 2015 pelo prefeito Eduardo Paes, do PMDB, como secretário municipal de Cultura do Rio de Janeiro.

Calero é quem sabe onde lhe aperta o sapato – e lhe dói o calo –, mas talvez devesse continuar como secretário municipal para cuidar dos programas Viva a Arte! e Fomento Cidade Olímpica. Pelo andar da carruagem, terá muito pouco a fazer, trabalhando para Temer numa renegada Secretaria de Cultura.

Pelo menos, é o que parecem pensar a antropóloga Cláudia Leitão, a consultora de projetos culturais e coordenadora de curso de pós-graduação da Fundação Getúlio Vargas, Eliane Costa, a atriz Bruna Lombardi, a cantora Daniela Mercury e a jornalista e apresentadora de TV Marília Gabriela, todas sondadas para a Secretaria de Cultura, porque Temer precisava, afinal, nomear uma mulher para seu governo.

O clima na área cultural não está favorável ao sucessor de Dilma no Palácio do Planalto. Muito menos no Palácio Gustavo Capanema, antiga sede do Ministério da Educação e Cultura, no Rio de Janeiro, onde nesta semana se viu manifestação, ao som de “Carmina Burana” de Carl Orff, onde se destacam estes versos proféticos: “Ó Sorte,/És como a Lua/Mutável,/Sempre aumentas/ Ou diminuis;/A detestável vida/ Ora oprime/E ora cura”.

Foto: reprodução
Foto: reprodução. Clique para ver o vídeo

No mesmo dia dessa manifestação, a internet divulga entrevista do cientista político e professor da USP Paulo Pinheiro, que ocupou a pasta de Direitos Humanos no governo de Fernando Henrique Cardoso.

“Torço para que as manifestações contra o governo não parem”, afirmou Paulo Pinheiro. Foi entrevistado por telefone, pois está em Genebra, na Suíça, liderando missão da ONU sobre a crise na Síria.

Pinheiro disse que não reconhece o governo Michel Temer, pois “é um governo reacionário, retrógrado e gagá. Não tem mulheres, não tem negros. Com uma canetada acabou com a Cultura, com os Direitos Humanos, colocou criacionistas nos ministérios da Saúde e Indústria e Comércio. Isso é uma agressão”. E completou o comissário das Nações Unidas: “Até o governo Dilma, o Brasil era levado a sério, mas com Temer estamos caminhando para nos tornarmos uma República de Bananas. Temo pela ruptura da política externa brasileira.

Sim, está faltando muito mais que um Ministério da Cultura no Brasil.

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Por José de Souza Castro

Jornalista mineiro, desde 1972, com passagem – como repórter, redator, editor, chefe de reportagem ou chefe de redação – pelo Jornal do Brasil (16 anos), Estado de Minas (1), O Globo (2), Rádio Alvorada (8) e Hoje em Dia (1). É autor de vários livros e coautor do Blog da Kikacastro, ao lado da filha.

1 comentário

  1. Depois de falar sobre o protesto em Cannes, recomendo a leitura da reportagem da BBC sobre Aquarius, o filme brasileiro cotado para a Palma de Ouro do Festival de Cannes. Se vencer, será a segunda vez que um filme brasileiro sai do território francês com essa estatueta valiosa. A primeira, com O Pagador de Promessas, de Anselmo Duarte, foi em 1962. Dois anos antes do último golpe contra a democracia no Brasil. A reportagem pode ser lida aqui: http://www.bbc.com/portuguese/geral-36322435?ocid=socialflow_twitter

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