As crianças de rua não são parte da paisagem

Foto: Franklin de Freitas

Nos últimos tempos temos sido bombardeados com notícias de uma tal “gangue das meninas”, formada por crianças de cerca de dez anos de idade, que fazem “arrastões” na Vila Mariana. (Ou pelo menos era assim o começo dos noticiários, há alguns meses; mais recentemente eles se tornaram mais sensatos e aprofundados).

Quando li aquelas notícias me chamou a atenção o fato de essas crianças serem tão pequenas, tão novas, nunca andarem com qualquer tipo de arma (nem o básico caquinho de vidro) e “atacarem” lojas de um bairro nobre para conseguir objetos de desejo tais como bombons, chips e cosméticos.

A questão social era tão escancarada que muito me admirava o tratamento de bandido dado a essas crianças. Isso não é caso de polícia, vejam bem. Mas os comerciantes se armando com paus para receber agressivamente essas pequenas infratores certamente poderia se tornar caso de polícia. Será que a inversão de valores chegou a tal ponto?

Um dos melhores exemplos de como essas crianças estão invisíveis foi retratado muito bem pelo relato do repórter-fotográfico Moacyr Lopes Júnior, publicado na Folha deste domingo. Como só saiu na edição nacional do jornal, reproduzo aqui:

Pequena, suja, de cabelos curtos e encaracolados, a criança, com aparência de 11 anos de idade, foi encontrada pela reportagem às 10h30 de sexta-feira na rua Domingos de Morais, repleta de policiais militares, na Vila Mariana (zona sul da cidade).
Foi lá que, há alguns meses, um grupo de meninas da mesma idade que ela começou a promover arrastões.
Esse é o assunto na boca de todos os comerciantes da região. Um deles disse à Folha que aquela menina era uma das integrantes do grupo, “a mais danada de todas”.
A reportagem acompanhou a criança na maior parte do dia a última sexta-feira, até as 17h, sem deixar que ela percebesse que era observada de perto.
Pela manhã, ela conversou com um morador de rua que aparentava ter 25 anos. Na conversa, ele parecia instruir os movimentos da criança.
Na hora do almoço, depois de dar uma bronca na menina, o rapaz se afastou e a deixou novamente sozinha.
A menina se deitou no banco do largo Ana Rosa, em frente à estação de metrô, por onde circulam aproximadamente 40 mil pessoas por dia -nenhuma se preocupou com a garota, que dormia profundamente.
À tarde, ela estava frenética: passeava no meio dos carros, atravessava a rua, mudava de ideia, sentava na sarjeta, logo se levantava de novo, depois assustava os pedestres -sempre sozinha.
Ela não cometeu nenhum delito em todo o tempo que a reportagem a seguiu.
Já no final da tarde, a Folha perdeu a menina de vista quando ela se misturou a pessoas num ponto de ônibus e ficou invisível de vez.

É isso, gente. Quem é responsável por essas crianças furtando em grupos na Vila Mariana (e depois no Paraíso, em Itaim)? O Estado, obviamente, que não executa as boas leis dessa área, implementando políticas públicas eficientes, com criação de creches e programas culturais e esportivos, pra essas crianças não ficarem nas ruas, com garantia de moradia digna às famílias etc. As famílias, em segundo lugar, que são vítimas das falhas do Estado, mas também são desestruturadas e têm sua parcela na má criação dessas crianças. As ONGs que atuam na área, cuidando de abrigos e casas de passagem, que também são ineficientes e insuficientes. A mídia mais irresponsável, que criminaliza e coloca a culpa em crianças, tratando-as como bandidos e simplificando muito as coisas. E, pra resumir, todos nós, cidadãos, que vemos crianças magrinhas, minguadas, às vezes dormindo sob um sol de rachar, pelo efeito das drogas, em plena calçada, mas invisíveis como a menina que o Moacyr observou e a menina da foto que ilustra o post — e não fazemos NADA.

Termino o post com uma sugestão: CLIQUE AQUI e imprima a lista de telefones dos conselhos tutelares da cidade (aos que não são de São Paulo, busquem as listas nos sites das respectivas prefeituras), ou pelo menos da região onde você mora e trabalha. Sempre que vir uma criança na porta do metrô por onde passam 40 mil pessoas por dia, destaque-se dessa multidão e ligue para o conselho. Na falta do telefone, ligue para a polícia mesmo, que, em tese, tem que estar preparada para levar a criança ao conselho (muito em tese, por isso acho que é a última opção). É claro que os conselhos também são falhos, ineficazes e muitas vezes incompetentes, mas é melhor do que simplesmente passar reto pelo malabarista do semáforo, como se ele fosse parte brutal da paisagem da cidade.

Por Cristina Moreno de Castro (kikacastro)

Mineira de Beagá, jornalista (passagem por Folha de S.Paulo, g1 e TV Globo, UOL, O Tempo etc), blogueira há 20 anos, amante dos livros, poeta, cinéfila, blueseira, atleticana, politizada, otimista, aprendendo desde 2015 a ser a melhor mãe do mundo para o Luiz. Antirracista e antifascista.

3 comentários

  1. Depois do homem invisível, de Chesterton, a menina invisível. Estamos progredindo – ou seria regredindo? Esse problema dos meninos de rua é bem antigo. “Capitães da Areia” foi escrito por Jorge Amado em 1937, O cenário era Salvador. Meu cenário, quando menino, era uma cidade pacata do interior de Minas. E meu pesadelo chamava-se (pelo menos, era como o conhecíamos) Pica-Fumo. Talvez porque andava com um daqueles canivetes usados pelos adultos para fazer seu cigarrinho de palha. Um menino magrelo, negro, paupérrimo, de uns 10 anos – e o terror dos outros meninos mais ou menos da mesma idade que tinham um par de sapato para as missas de domingo. Pelo menos para nós, ele não era invisível – e tratávamos de vê-lo longe, para dar tempo de fugir.

    “É um país de bandidos”, leio no comentário acima. De fato. Mas os bandidos não são esses meninos. E nem é de agora, a bandidagem. Ontem li artigo do professor Fábio Konder Comparato, bem esclarecedor de nossos males. Um trecho:

    Para ficarmos tão-só no campo da corrupção da Justiça, é preciso lembrar o testemunho dos viajantes estrangeiros durante todo o século XIX. No relato de sua viagem ao Rio de Janeiro e a Minas Gerais, no início do século, Auguste Saint-Hilaire observou: “Em um país no qual uma longa escravidão fez, por assim dizer, da corrupção uma espécie de hábito, os magistrados, libertos de qualquer espécie de vigilância, podem impunemente ceder às tentações”. No mesmo sentido, John Luccock, que aqui viveu de 1808 a 1818: “Na realidade, parece ser de regra que no Brasil toda a Justiça seja comprada. Esse sentimento se acha por tal forma arraigado nos costumes e na maneira geral de pensar, que talvez ninguém o considere danoso; por outro lado, protestar contra a prática de semelhante máxima pareceria não somente ridículo, como serviria apenas para provocar a completa ruína do queixoso”.E Charles Darwin, por ocasião da estada do Beagle em nosso país, em 1832: ‘Não importa o tamanho das acusações que possam existir contra um homem de posses, é seguro que em pouco tempo ele estará livre. Todos aqui podem ser subornados.”

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    1. Ótimo comentário. O problema não é de hoje, como bem observaram esses viajantes do passado.
      Capitães de Areia nem é tão antigo e já é um clássico brasileiro, porque parece retratar algo que nunca deixará de existir.
      A propósito: segundo levantamento da SDH, ainda há 23 mil crianças vivendo NAS RUAS em todo o Brasil. 54 mil em abrigos. Se ainda há isso tudo, é porque estamos longe de ter conseguido combater a miséria e a desigualdade por aqui, como Lula quis nos fazer acreditar. Embora, é claro, tenhamos melhorado muito.

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