Um homem está passeando com seu cachorro, um Golden Retriever provavelmente muito querido, vestido com uma roupinha. O cachorro vai à frente, sem guia.
Chega a esquina, e o cão não para. Segue pela faixa de pedestres. Um motociclista que vem vindo rápido freia em cima dele, quase o atropela.
Os dois homens se encaram, tensos.
Final 1
– Ô, cara, foi mal aí – diz o que estava com o cão. – Eu devia ter chamado o Luke para ele não entrar na sua frente. Normalmente ele não atravessa assim, por isso que ando até sem a guia.
O clima distensiona na hora. O motoboy estava bravo, pensando “porque diabos o cachorro estava andando sem guia e quase causou um acidente”, mas relaxou com o tom de voz suave do outro e o pedido de desculpas. Responde:
– Não, imagina, eu devia ter parado antes da faixa também, desculpa por ter pegado no seu cachorro.
Os dois continuam seus caminhos. Ninguém certo, ninguém errado, vida que segue. Dali a alguns minutos, nem se lembram mais do incidente.
Final 2
– Ô, seu imbecil! Quase atropelou meu cachorro!
– Quê?! Ele tá andando sem coleira, passou na minha frente do nada, quase causou um acidente! Você tem que andar com coleira com seu animal!
– &^*%$#&^$!
– &^*%$#&^$!
O motociclista desce do veículo, tira o capacete e o usa como arma pra bater no outro. Este revida, com chutes e socos.
Alguns carros param no cruzamento, seus motoristas saem, mas ficam observando, ninguém intervém no espetáculo de violência. Um até saca o celular para filmar a pancadaria.
O Golden Retriever fica olhando a cena calmamente, tentando entender o comportamento daqueles dois animais.
Depois de um tempo, o trabalhador sobe na moto e vai embora. O outro ainda fica um tempo na esquina, gesticulando muito e falando ao celular com alguém.
O domingo do dois foi estragado. Vão passar o resto do dia – e talvez por muitos dias – sentindo dores no corpo e na alma, mastigando os ressentimentos e o ódio contra um completo desconhecido, por um motivo absolutamente imbecil.
Final 3
– Ô, seu imbecil! Quase atropelou meu cachorro!
– Quê?! Ele tá andando sem coleira, passou na minha frente do nada, quase causou um acidente! Você tem que andar com coleira com seu animal!
– &^*%$#&^$!
– &^*%$#&^$!
Um dos dois tira uma arma mal escondida na jaqueta.
– Que isso, que isso, não precisa disso, irmão!
– Agora é irmão, né? Seu &^*%$#&^$!
E atira.
O Golden Retriever observa a cena entre os dois animais, sem entender nada. Um está imóvel, já morto. O outro é segurado por várias pessoas que pararam o carro logo antes. Vai ser preso.
Duas vidas destruídas por um motivo absolutamente imbecil.
A cena inicial deste post foi realmente presenciada por mim há dois domingos, na região da Savassi. Eu passeava com meu filho e minha cachorrinha, quando vi os dois marmanjos brigando, e os outros carros encostados, com outros marmanjos observando.
O final que eu vi foi o segundo. Mas poderia ter sido o terceiro, caso um dos dois estivesse armado. Por isso mesmo, decidi dar a volta por um caminho mais longo, com medo do que meu filho pudesse presenciar. E porque tenho pavor de brigas.
Em nossa ânsia por provarmos estarmos certos, em nosso ódio contra os desconhecidos (e ódio de classe e de cor, também, muitas vezes), em nossa incapacidade de dialogar, mesmo diante de situações de tensão, estragamos nossos dias e às vezes destruímos nossas vidas pelos motivos mais imbecis.
Ninguém estava certo ali. Um andava com o cachorro sem a guia. O outro acelerou na faixa de pedestre. O trânsito é um prato cheio para os conflitos e a violência. Mas, se aprendêssemos a usar mais o final 1, o do “foi mal aí, companheiro”, “sem problemas, parceiro”, a vida seria bem mais leve, bem mais fácil.
É a mescla do perdão com a humildade, da aceitação do próprio erro com a cultura da paz.
É o respirar fundo, o dar de ombros, o seguir em frente sem precisar provar estar certo para ninguém. É aquele velho ditado de que, quando um não quer, dois não brigam. E não brigam mesmo.
É milagroso o que um tom de voz sereno, um pedido de desculpas, um tapinha nas costas são capazes de fazer mesmo nas situações mais tensas.
Que tal colocarmos o primeiro final mais vezes em prática em nossas vidas?
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muita sabedoria
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🙂
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Cenas de rua são o tesouro dos cronistas atentos. Quando atentos e sábios, melhor ainda.
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😀
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