Não é sobre uma ‘livraria mágica de Paris’: luto e dor de amor

Pilhas e pilhas com muitos livros, livraria.
Foto: Dustin Tramel / Unsplash

Antes de mais nada, o título que inventaram para a versão traduzida para o português não tem nada a ver com o livro.

Comprei este “A Livraria Mágica de Paris” seduzida pela promoção que estava rolando na véspera de Natal com os livros da editora Record e pela sensação que o título proporcionava de ser uma leitura leve.

Afinal, estamos falando de uma livraria! E mágica! Ainda por cima, em Paris!

Mas não se iludam.

Trata-se de um livro, mais que qualquer coisa, sobre o luto.

É também sobre a fossa, sobre a dor que a pessoa sente ao perder um grande amor. Mas é muito mais sobre o lento processo de cura que acontece durante um luto.

Como em outras boas histórias que vemos por aí, tanto na literatura quanto no cinema, este processo acontece numa road trip. Ou melhor, numa viagem que mescla estradas a rios. Boa parte do trajeto de Jean Perdu, o livreiro, se passa entre os rios Senna e Ródano, descendo de Paris em direção ao Sul da França.

E as viagens, como a gente bem sabe, são ótimos remédios. Para todo tipo de problema, então não seria diferente nessa jornada de cura da fossa/luto.

Para nós, leitores, foi um percurso interessante, por nos apresentar paisagens como as de Sancerre, Nevers, Cuisery, Orange, Avignon… Fiquei com muita vontade de repetir o trajeto um dia, para espantar meus próprios fantasmas, de preferência conhecendo o verão em Sanary-sur-Mer.

Como se vê, o livro não é sobre uma livraria, muito menos mágica, e a história quase não permanece em Paris, com seu protagonista explorando o mundo, de dentro e de fora, ao longo de vários lugares.

Sim, ele é um livreiro e, sim, ele mora, parte do tempo, em seu barco-livraria, mas o livro é muito mais sobre o quarto de lavanda (do título original em alemão, “das lavendelzimmer“). Não existe mágica alguma, existe um processo lento e doloroso, com cheiro de lavanda. Mas, ah, esses marqueteiros…!

Flores de lavanda. Foto: Janine Joles / Unsplash
Flores de lavanda. Foto: Janine Joles / Unsplash

Livros-remédios: a lista de curas indicadas pelo ‘farmacêutico literário’

Uma das boas sacadas da autora, Nina George, é imaginar seu livreiro Perdu como conhecedor de 10 mil livros, e altamente capaz de “ler a alma” de seus fregueses, podendo indicar a eles livros como se fossem remédios.

Assim, além da viagem pelos rios franceses, a literatura também nos é apresentada como uma boa fonte de cura. Como, por exemplo, estas obras que aparecem listadas no final do livro:

  • “O Guia do Mochileiro das Galáxias” (Douglas Adams) é eficaz para a falta de humor.
  • “A Elegância do Ouriço” (Muriel Barbery) ajuda os gênios não reconhecidos.
  • “Dom Quixote” (Miguel de Cervantes) é bom para conflitos entre a realidade e o idealismo.
  • “Promessa do Amanhecer” (Gary Romain) é indicado para a compreensão do amor materno.
  • “Degraus” (Herman Hesse) combate a tristeza e dá coragem em confiar.
  • “Investigações de um cão” (Kafka) funciona contra a sensação de ser incompreendido por todos.
  • “A canção de gelo e fogo” (George R. R. Martin) ajuda a quebrar o hábito de sentir saudades do que está longe, atua ainda contra a dor de amor e contra raivas do cotidiano.
  • “O Homem sem qualidades” (Robert Musil) é para aqueles que esqueceram o que querem da vida, perderam um objetivo.
  • “1984” (George Orwell) funciona contra a credulidade e a fleuma.
  • “Ensaio sobre a cegueira” (José Saramago) é para combater a cegueira para o sentido da própria vida.
  • “As Aventuras de Tom Sawyer” (Mark Twain) é para superar o medo de virar adulto e para a redescoberta da criança na própria personalidade.

Estes são só alguns, não transcrevi todos. Mas dão uma noção de como funcionam as indicações do livreiro Perdu. Pena que esta característica interessantíssima só seja mais explorada no início do livro e, mesmo assim, muito me intrigou que Perdu não tenha sido visto lendo em nenhuma das páginas.

Livros e remédios em cima da cama.
Quando tive Covid-19, um livro que me ajudou na cura foi “O Ano do Pensamento Mágico”, de Joan Didion – curiosamente também sobre luto.

Um livro para ler quando quiser tratar a fossa ou o luto

Até agora, relendo minha resenha, fica a impressão de que adorei “A Livraria Mágica de Paris”. Mas a verdade é que achei ele, no geral, mediano.

Existe uma pungência e uma dor reais na escrita enlutada de Nina e, me parece, ela viveu parte dessa dor no processo de escrita, já que seu pai morreu no período.

A dedicatória do livro vai para ele:

“Papai, com você morreu a única pessoa que leu tudo o que escrevi desde que aprendi a escrever. Sentirei saudades eternamente. Vejo você em todas as luzes de todas as noites e em todas as ondas de todos os mares. Você foi embora no meio da frase.”

Eu me solidarizo com a autora e acho que me sentirei da mesma forma se eu perder meu pai herói, o único que leu tudo o que escrevi desde que aprendi a escrever, e que nunca se cansou de me ouvir e me ensinar e me compreender.

O livro todo transmite essa dor. E a consequência disso é que ele é uma mistura de trechos bonitos sobre a vida e a morte com alguns pensamentos que soam piegas demais, por vezes repetitivos demais – para quem não os está sentindo no momento.

Digamos que foi um remédio que tomei para a causa errada – já que o péssimo título traduzido tinha me feito crer se tratar de uma história mais suave, que era a que eu precisava neste início de ano pesado.

Por isso, resolvi abrir o post informando a vocês: não, não é. Vai ter seus momentos de graça, vai ter também historinhas de amor, mas, no fundo, é um livro sobre uma alma bastante sofrida tentando se recuperar de duas décadas de vida completamente desperdiçadas.

Talvez, ler este “quarto da lavanda” com isso em mente, no momento certo, possa tornar a escrita de Nina George muito mais emocionante e necessária do que ela foi para mim neste janeiro chuvoso.

Agora eu não precisava dessa leitura.

Imagem em preto e branco mostra gato com olhar triste.
Foto: Nastya Dulhiier / Unsplash

As 3 coisas necessárias para voltar a ser feliz de verdade

Ainda assim, admitindo que tomei aspirina para curar depressão, ou ansiolítico contra picada de mosquito, gostei da “road-river-trip”, gostei dos personagens – Perdu, Max, Cuneo, Samy, Catherine, Luc, todos são incrivelmente cheios de afeto –, gostei da ideia de livros que ajudam a curar.

Livros sempre funcionaram como cura para mim. Qualquer dia desses, também vou abrir uma farmácia literária e distribuir meus conselhos literários. Enquanto isso, deixo vocês com esta pequena sabedoria, da página 252, sobre as “três coisas que eram necessárias para voltar a ser ‘feliz’ de verdade”:

  • “Primeiro: uma boa comida. Sem as porcarias que só o deixam infeliz, preguiçoso e gordo.
  • Dois: dormir bem (graças a mais esportes, menos álcool e belos pensamentos).
  • Três: passar tempo com pessoas que sejam amigáveis e queiram entender você, do jeito delas.”

Façamos mais destas três coisas! 😉

 

Capa do livro "A Livraria Mágica de Paris", de Nina George.

‘A Livraria Mágica de Paris’
Nina George
Ed. Record
306 páginas
R$ 28,80 na Amazon

 

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Por Cristina Moreno de Castro (kikacastro)

Mineira de Beagá, jornalista (passagem por Folha de S.Paulo, g1 e TV Globo, UOL, O Tempo etc), blogueira há 20 anos, amante dos livros, poeta, cinéfila, blueseira, atleticana, politizada, otimista, aprendendo desde 2015 a ser a melhor mãe do mundo para o Luiz. Antirracista e antifascista.

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