‘Filhos de Sangue’, de Octavia E. Butler: distopias necessárias

Ilustração mostra bebê preso dentro de uma gaiola. É o detalhe da capa do livro 'Filhos de Sangue e Outras Histórias', de Octavia E. Butler (ed. Morro Branco)
Detalhe da capa do livro 'Filhos de Sangue e Outras Histórias', de Octavia E. Butler (ed. Morro Branco)

A pandemia da Covid-19 foi um horror para boa parte do planeta. Seja pelas milhares de mortes que o vírus causou, seja pelo isolamento que ele provocou, pelo medo e ansiedade gerados pelas incertezas, pela crise econômica que afetou sobretudo os mais pobres.

Mas imagine uma pandemia ainda pior? Um vírus maluco, por exemplo, que afetasse a comunicação entre as pessoas. Que impedisse algumas de falarem, outras tantas de lerem. Imagine o caos que isso geraria no planeta, na vida em sociedade como conhecemos hoje.

Esta ideia está presente no conto “Sons da Fala“, publicado originalmente em 1983, muito antes de sermos apresentados ao coronavírus. Apesar de ele ser pesadíssimo, foi meu favorito neste livro “Filhos de Sangue e Outras Histórias“, o segundo de Octavia E. Butler que leio.

Segundo a autora, a história foi concebida num dia em que ela se perguntou “se a espécie humana algum dia amadureceria o suficiente para aprender a se comunicar sem usar os punhos de um jeito ou de outro”.

(Essa observação aparece na “nota da autora” – todos os textos desta edição são acompanhados de uma nota dessas, que nos mostra o que Octavia tinha em mente quando escreveu cada um deles. Um privilégio!)

O livro ainda tem outros seis contos e dois ensaios – um desses ensaios eu esmiucei no post de ontem: “13 dicas para quem quer ser escritor“.

A importância da ficção científica

Cada um desses contos traz um pouco desse olhar crítico e ultraimaginativo da autora norte-americana. O que eles têm em comum é basicamente tratarem-se de ficção científica – exceto por “Parentes próximos” e “Atalho”, que eu enquadraria no gênero do drama.

Você pode se perguntar: mas pra que imaginar algo assim? Pra que servem as ficções científicas e as distopias e alegorias malucas que passam em cabeças agitadas como a de Octavia E. Butler?

Elas nos ajudam a enxergar a vida por outros ângulos. Nos provocam quanto ao que podemos fazer no mundo presente em que vivemos hoje. E também servem de alegorias para metáforas mais amplas, como, no caso desse conto, para os estragos causados pelos problemas de comunicação já existentes – as fake news, por exemplo, que até ajudaram a eleger fascistas.

Ou, nas palavras da autora, no ensaio autobiográfico “Obsessão Positiva”:

“Em seu melhor sentido, a ficção científica estimula a imaginação e a criatividade. Coloca quem lê e quem escreve fora dos caminhos já conhecido, fora das trilhas muito estreitas do que “todo mundo” está dizendo, fazendo, pensando, seja lá quem for “todo mundo” naquele momento”. 

Esse tipo de texto, defende Octavia:

  • ajuda a “advertir ou levar em consideração formas alternativas de pensamento e ação”
  • e traz uma “análise dos possíveis efeitos da ciência e da tecnologia, ou da organização social e da orientação política”.
Foto mostra lugar escuro, corredor longo, parecendo de filme de terror. Remete a uma distopia, a uma ficção científica tensa.
Foto: Peter Scherbatykh / Unsplash

As mensagens nos contos de Octavia E. Butler

Vejam as mensagens fortes dos outros contos de ficção científica presentes nesta coletânea:

“Filhos de Sangue” nos transporta para um universo extraterrestre. Mas também aborda pura e simplesmente a relação entre seres diferentes. E ainda pensa no mundo com homens grávidos.

“O Entardecer, a manhã e a noite”, também pesadíssimo, é sobre um remédio criado para curar o câncer que desencadeou uma doença terrível que leva os humanos a tentarem se autodestruir. Traz algumas reflexões sobre inclusão e diferenças também, num nível mais aprofundado.

“Anistia” de novo nos leva para um universo de interações com extraterrestres. Mas, desta vez, é muito mais sobre geopolítica, sobre táticas de guerra e tortura usadas pelos seres ditos “humanos” do que sobre as relações mais íntimas presentes em “Filhos de Sangue”.

Por fim, “O Livro de Martha” é o que a autora classificou como sua “história de utopia”. Aqui temos Martha, uma escritora negra, conversando com Deus, que a escolhe para fazer uma missão. Mas ela não fica feliz ou honrada por ter sido escolhida, como alguns poderiam pensar. As preocupações que ela sente diante desse desafio são interessantíssimas. E se ela cometer um erro terrível e causar um grande mal irreparável?

‘É muito fácil seguir líderes ruins, mas atraentes’

Dois trechos desse conto merecem destaque:

“E ela imediatamente pensou em algumas delas, pessoas que ficariam felizes em exterminar grupos inteiros da população, que odiavam ou temiam; pessoas que poderiam constituir amplas tiranias, que moldariam todo mundo da mesma forma, não importando quanto sofrimento isso produzisse”.

“É muito fácil seguir líderes ruins, mas atraentes, abraçar hábitos prazerosos, mas destrutivos, ignorar o desastre iminente porque, afinal de contas, talvez ele não aconteça, ou talvez aconteça apenas com os outros”.

Este conto é mais recente, Octavia escreveu em 2003. Mas não parece ter sido escrito agora? Com a extrema-direita radical populista ressurgindo em vários pontos do planeta, desde Donald Trump até Jair Bolsonaro?

Bolsonaro, por exemplo, já afirmou várias vezes que “as minorias têm que se curvar às maiorias” (ele já disse isso em 2011, em 2020 e, de novo, agora há pouco). Isso não lembra as pessoas a que a narradora se refere na primeira frase que destaquei acima? Que “ficariam felizes em exterminar grupos inteiros da população, que odiavam ou temiam”?

As ficções científicas, suas distopias e alegorias servem pra isso. Para nos fazerem refletir se este é o mundo que queremos, aqui, na realidade. Porque utopias tampouco teremos. Mas será que o que queremos é um mundo que ataca com intolerância, ódio e até guerra e morte os outros grupos apenas por serem diferentes?

Nem sempre é fácil ler textos assim tão duros quanto estes. Nos primeiros contos, cheguei a pensar como deveria ser difícil ser Octavia, com tantas ideias tão densas e aflitivas em sua cabeça. Nem acho que deveríamos ler textos assim tão difíceis em todas as fases das nossas vidas. Mas eles jogam luzes importantes sobre nosso mundo. São, por isso, necessários.

Talvez mais ainda em tempos como este em que estamos vivendo, do recrudescimento do fascismo.

 

Capa do livro Filhos de Sangue, de Octavia E. Butler“Filhos de Sangue e Outras Histórias”
Octavia E. Butler
Ed. Morro Branco
239 páginas
R$ 32,90 na Amazon

 

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Por Cristina Moreno de Castro (kikacastro)

Mineira de Beagá, escritora, jornalista (passagem por Folha de S.Paulo, g1, TV Globo, O Tempo etc), blogueira há mais de 20 anos, amante dos livros, cinéfila, blueseira, atleticana, politizada, otimista, aprendendo desde 2015 a ser a melhor mãe do mundo para o Luiz. Autora dos livros A Vaga é Sua (Publifolha, 2010) e (Con)vivências (edição de autor, 2025). Antirracista e antifascista.

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