Meu caro Lula,
Escrevo ao sr., meu candidato a presidente, para alertar que, se tudo der certo e o sr. for eleito no próximo domingo, o desafio desta vez vai ser bem maior do que foi há quase 20 anos.
Naquela época, um democrata, que era o FHC, te entregou a faixa presidencial.
As discussões eram saudáveis e pautadas em propostas e visões de mundo para quem fosse assumir a administração pública. Os temas em alta eram, por exemplo: privatizações, reforma agrária, cotas, reformas tributária e previdenciária, controle da inflação etc.
Neste 2022 da radicalização formada pelos algoritmos das redes sociais, pelo fundamentalismo religioso que assumiu os discursos políticos e pelo recrudescimento da extrema-direita em todo o mundo, fomentado pela turma de Donald Trump e Steve Bannon, as pautas parecem vindas de filmes de ficção científica distópicos: Terra plana, negacionismo científico, discurso antivacina, a volta do comunismo, e assim por diante.
Retrocedemos não 50 anos, como escrevi dia desses: em alguns momentos me vejo de volta à Idade Média, que terminou seu período sombrio há 500 anos.
Desta vez, meu caro Lula, o pessoal parece achar que o sr. vai assumir a presidência e automaticamente liberar todas as drogas (como se isso não fosse uma pauta para o Congresso), substituir livros de matemática pelo Kama Sutra e, claro, não nos esqueçamos disso: “transformar o Brasil numa Venezuela” – seja lá o que isso signifique para essa turma que acredita em mensagens apócrifas de WhatsApp.
O que me intriga é que o sr. não é um desconhecido vindo de Marte há dois meses: não, é um sujeito que faz política no Brasil desde a década de 1970, que esteve à frente da Presidência da República durante oito anos, e saiu dela com recorde de aprovação, de 87%.
Mas é querer demais que as pessoas se lembrem de como era o Brasil e o que o sr. fez em sua gestão, entre 2003 e 2010. Afinal, elas parecem já ter se esquecido do que o seu adversário, Jair Bolsonaro, fez outro dia mesmo, durante o auge da pandemia de Covid-19, entre 2020 e o início deste ano.
Se esqueceram dele:
- dizendo que era só “uma gripezinha“,
- tripudiando sobre os mortos (ele chegou a dizer “E daí?” quando questionado sobre o avanço das mortes no Brasil, e nunca me esquecerei disso),
- imitando pessoas sem ar quando faltava oxigênio nos hospitais,
- dizendo que era pras pessoas saírem de casa quando todos os governantes do mundo e a comunidade científica recomendavam o isolamento,
- dando o mau exemplo de aglomerar pessoas, sem máscara, quando essa era a única forma eficaz de conter a disseminação do vírus,
- depois, quando finalmente saiu a vacina, falando mal dela, dizendo que transformaria as pessoas em jacaré, atrasando a compra dos imunizantes para o país, ele próprio não se vacinando.
- Ah sim, e ficou fazendo propaganda de medicamentos sem nenhuma eficácia comprovada contra o vírus.

Como esse pessoal pode ter se esquecido de coisas que viveram tão recentemente? Será que a lavagem cerebral foi tão eficaz assim? Ou as pessoas é que não têm caráter mesmo? Isso também me intriga.
Enfim, talvez jamais saberemos o que motiva essas pessoas*. O que o sr. deve saber é que uma parcela bem grande da população pensa desta forma sobre o sr., seja usando o discurso religioso, seja repetindo fake news absurdas sobre ideologia de gênero e afins, seja se apoiando no discurso da corrupção (como se não estivéssemos diante do maior esquema de corrupção “de que se tem registro no país”, nas palavras da Transparência Internacional, neste governo Bolsonaro – o Orçamento Secreto).
Governar nos próximos quatro anos não será fácil. Para cada política bacana que o sr. conseguir implementar, dez “mamadeiras de piroca” serão inventadas no zapzap.
Ou seja, o sr. não terá de lidar apenas com uma imprensa pouco crítica (ou mal-intencionada mesmo) que cobriu as decisões de um juiz que, na primeira oportunidade, virou ministro de Bolsonaro, e cobriu PowerPoints mentirosos, sempre como se fossem verdade incontestável – e tenho certeza que os R$ 75 mil que Dallagnol foi condenado a indenizar ao sr. não pagam nem um décimo da afronta daquela cobertura.
Agora terá de lidar também com esses mecanismos mais modernos de disseminação de mentiras, com uso de deep fake e outras tecnologias perversas.
Minha esperança é que, fora do poder, o clã Bolsonaro, que é quem mais financia a disseminação de fake news no Brasil, vá voltando para a irrelevância política que ele sempre ocupou nas duas décadas em que o patriarca esteve no baixo clero da Câmara. Vá voltando a ser apenas chacota do CQC.

E que a política volte a a se pautar em temas relevantes para o Brasil, e não em coisas inventadas apenas para disseminar medo e ódio.
O sr. terá a tarefa ainda mais colossal de re-unir o Brasil, meu caro Lula. De re-unir famílias rachadas por brigas malucas, re-unir o Congresso Nacional, re-unir empresariado e trabalhadores em torno de pautas importantes para a economia e a sociedade, re-unir os colegas e amigos em torno dos churrascos regados a cerveja e picanha.
Esta será sua maior missão – que não é messiânica, é bem humana –, e está diretamente ligada ao maior motivo que já uniu uma grande coalizão em torno da sua candidatura: a manutenção do sistema democrático.
Eu confio na sua capacidade para fazer isso, porque o sr., melhor do que ninguém, sabe fazer política. E sabe fazer isso de forma pacífica, sem discursos de ódio, sem apelar para fuzis e granadas ou para ameaças desesperadas de golpe. Quem sai de um mandato com quase 90% de aprovação certamente tem o dom da reunião e da pacificação das pessoas em torno de objetivos comuns.
(E agradeço ao sr. por ainda topar fazer isso aos 77 anos. A propósito, feliz aniversário atrasado ;))
Mesmo confiando em sua capacidade, te desejo muita sorte. Tanto neste domingo, para garantir a continuidade do Estado Democrático de Direito no Brasil, com sua vitória nas urnas, quanto – se esta vitória vier – nos quatro anos seguintes, ao lado de gente muito qualificada que já declarou apoio ao senhor.
Boa sorte para todos nós! E um bom domingo!
Ass.: Cristina Moreno de Castro
* Dois filmes ajudam nesta reflexão, ambos baseados em fatos reais: “A Onda” e “O Experimento do Aprisionamento de Stanford“. Recomendo.
Leia também:
- Para votar com consciência, relembre as frases de Bolsonaro
- Como e por que o governo Bolsonaro é um risco à democracia
- ‘Hino’ ao inominável: artistas lançam música de protesto contra Bolsonaro
- Bolsonaro: 1 mentira a cada 3 minutos
- Abaixo-assinado defende democracia no Brasil e repudia ameaças de golpe
- Artistas leem carta pela democracia no Brasil; veja o vídeo
- O fanatismo, o fascista corrupto, as fake news e minha desesperança
- A fome no Brasil, que Bolsonaro insiste em negar que existe; veja charges
- Mais uma vez, Jair Bolsonaro flerta com o nazismo
➡ Quer reproduzir este ou outro conteúdo do meu blog em seu site? Tudo bem!, desde que cite a fonte (texto de Cristina Moreno de Castro, publicado no blog kikacastro.com.br) e coloque um link para o post original, combinado? Se quiser reproduzir o texto em algum livro didático ou outra publicação impressa, por favor, entre em contato para combinar.
➡ Quer receber os novos posts por email? É gratuito! Veja como é simples ASSINAR o blog! Saiba também como ANUNCIAR no blog e como CONTRIBUIR conosco! E, sempre que quiser, ENTRE EM CONTATO 😉
Descubra mais sobre blog da kikacastro
Assine para receber nossas notícias mais recentes por e-mail.


