O Dia da Tia

Tia Maria Afonsa, que morreu em 2012, e tio Thirésio, que morreu em 2015. Deixarão muitas saudades! Foto: arquivo pessoal
Tia Maria Afonsa, que morreu em 2012, e tio Thirésio, que morreu em 2015. Deixarão muitas saudades! Foto: arquivo pessoal

Depois da Madrinha, a Tia.

A Tia que me deixou tantas lembranças.

Boa parte delas é associada a comidas. Comidas maravilhosas, que ela fazia com prazer.

Tinha o frango ensopado do almoço. E o café com muitos biscoitos. Tinha um queijo que ela derretia na chapa, até ficar bem torradinho e crocante, e que eu comia como se fosse a coisa mais gostosa do universo. Ah, e as pelinhas de frango…! Eram o paraíso. Também tinha bolos… e balas.

As balas merecem um capítulo à parte. Ficavam “escondidas” no armário, entre roupas, onde eu e meus primos “Debrinha” e Cássio íamos cometer alguns furtos ocasionais. Tenho certeza de que ficavam propositalmente mal escondidas para que pudéssemos ser justamente recompensados por nossas pequenas aventuras.

Aventurar-se por aquela casa era mágico, um deleite para todas as crianças, mas especialmente para uma que cresceu em apartamento, como eu. A começar pelo imenso dossel que protegia o sono dos pernilongos, fartos naquela cidade quente. E as cristaleiras antigas cujas partes giravam, parecendo estarem subindo, ou descendo — e assim aprendi o que é ilusão de ótica. E a máquina de costura grandona, cercada por vários tecidos.

A Tia estava sempre maquiada, bochechas vermelhas, colar, roupas coloridas, cabelo tingido. Vaidosa e elegante e bonita. Nas fotos, sua pose favorita era o perfil. Belo perfil, que destacava os olhos grandes, que as filhas herdaram.

E tinha um sotaque cantado, cantado mesmo, como até eu, mineira de Beagá, conseguia perceber. Não era um sotaque da roça, como os atores globais se esforçam para tentar reproduzir ao imitar os mineiros. Tinha um ritmo próprio, que outros primos e tios meus, da mesma região, também têm. O sotaque mais bonito do país, diga-se.

Sempre entremeado pelas notícias da família, porque a Tia era boa de papo e de prosa e estava sempre se preocupando com todos.

Porque não era nem sotaque, nem vaidade, nem garfo que descreviam a Tia, mas sua atitude sempre prestativa com todos os irmãos, filhos, netos, marido — sobrinhos. Com a mãe, que lá morou nos últimos meses de vida, e precisava da vigília constante da filha.

E sempre sorridente.

A última vez em que a vi foi num outro dia triste, o dia em que enviei a primeira carta a deus. Mas não foi a última vez em que falei com ela. Esta faz pouco dias, por telefone, e, apesar de estar prestes a passar por uma cirurgia delicada, lá estava a voz dela, cheia de sorrisos, confiante e animada, com aquela cantoria do sotaque da Tia.

Fico feliz por ter telefonado (apesar do meu pouco hábito de telefonar para as pessoas, tão raro que o Tio nem me reconheceu na hora). Porque é aquela cantoria que vai ficar na minha memória para sempre.

 

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Por Cristina Moreno de Castro (kikacastro)

Mineira de Beagá, jornalista (passagem por Folha de S.Paulo, g1 e TV Globo, UOL, O Tempo etc), blogueira há 20 anos, amante dos livros, poeta, cinéfila, blueseira, atleticana, politizada, otimista, aprendendo desde 2015 a ser a melhor mãe do mundo para o Luiz. Antirracista e antifascista.

17 comentários

  1. Que gostoso esse texto, é ler e sentir o sabor doce da infância cheia de descobertas. É sentir o calor dos laços entre as pessoas e lembrar de tempos passados e saudosos.

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      1. Cris, alguém disse que as pessoas só morrem quando não há mais ninguém que se lembre delas. Essa sua tia, minha irmã mais velha, que morreu aos 71 anos, viverá por muito tempo, pois estará na memória dos filhos, irmãos, sobrinhos, netos, e da multidão de amigos que ela deixou para trás. Obrigado pela justa homenagem que você faz a ela neste espaço.

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  2. suas lembranças são as minhas também. além delas tem o imenso quintal (era imenso ou eu que era pequena demais !) cheio de mangueiras e folhas no chão… a tia fez parte da nossa infancia e estará sempre no nosso pensamento e no nosso coração. bom texto cris!

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  3. Oi Cris, lindo texto e justíssima homenagem… Todos nós devemos muitos favores a essa tia, que tinha uma preocupação constante em “agregar” a familia. Ela e os bons momentos que passamos juntas permanecerão em nossa memória… Saudades.

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  4. Ei, Cris,
    Lindo texto. Não vivi histórias parecidas com a sua durante a infância. Minhas lembranças são outras. Tão históricas quanto.
    Provei os biscoitinhos no mês passado. Memoráveis como também a receptividade. As balas ainda estavam – agora – pelo apartamento, pois lembro bem da Maria Angélica pedindo para a avó. Pena que eu estava de dieta. Se soubesse que eram tão boas, a teria furado imediatamente. rsrsrs…

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  5. Nossa cris, lindo mesmo. Minha vó vai ficar sempre na lembrança como uma mulher guerreira, que de um jeito que só ela sabia, acordava e dormia arrumada. De um jeito que só a gente da família que entende. De um jeito feliz, que nunca nos deixava ficar tristes.

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  6. Sensacional, Cris! Vi que o texto foi publicado há mais de 10 anos, mas foi uma surpresa sensacional. Me trouxe recordações incríveis, me levou de volta para minha infância e para a casa da minha vó. Desceu uma lágrima aqui no canto do olho, mas uma lágrima boa… De boas recordações e por me lembrar o quanto éramos felizes.
    Saudades!
    Abraço

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  7. Cris, relendo esse texto muito emocionado, percebi que em nenhum momento disse o nome dela. Não era preciso, pois, pelos comentários, sabiam de quem você estava falando. A minha irmã mais velha Maria Afonsa Rodrigues de Castro, a Fonsa, que esteve presente em pelo menos 22 páginas de meu livro da família, que cito no artigo publicado hoje. É inesquecível.

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    1. Pois é, não citei o nome nem da tia Maria Afonsa nem da Madrinha Lourdes. Foi uma homenagem anônima, transformando minhas doces memórias de infância em algo que os leitores poderiam identificar em suas próprias famílias. Mas todos que as conhecem sabem imediatamente que estou falando delas, né 😀

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