Depois de dias de refresco aqui no blog, dedicado exclusivamente às nossas crianças, retomo hoje o assunto que está entalado na garganta da população brasileira: o grave risco à democracia que uma eventual reeleição de Jair Bolsonaro representaria.
O texto que trago hoje é do professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) Douglas Garcia, colaborador frequente (e sempre bem-vindo) deste blog.
É um dos melhores textos que ele já escreveu por aqui, e recomendo a leitura atenta e o compartilhamento nos próximos dias. O que está em jogo é muito mais que apenas quatro anos a mais de Bolsonaro na presidência da República: é a tentativa de um sujeito da extrema-direita de se perpetuar no poder indefinidamente.
Mas vamos ao texto do professor Douglas:
Governo Bolsonaro: uma diferença de espécie
– Douglas Garcia, professor do Departamento de Filosofia da UFOP
O governo Jair Bolsonaro pode ser considerado uma presidência normal, típica, em continuidade com os demais governos brasileiros pós-redemocratização?
Responder a essa questão é um passo importante para poder avaliar se é certo ou não dizer que um segundo mandato do atual presidente representaria um risco à democracia, como fizeram recentemente a revista britânica “The Economist” e o jornal americano “The New York Times”.
A organização internacional “Idea”, que avalia o estado da democracia no mundo, considera o Brasil atualmente na categoria “democracia imperfeita”. Ela expressa preocupação que o Brasil se transforme em um “regime híbrido” em um segundo mandato do atual presidente. Uma “democracia iliberal”, na qual haveria legitimidade de origem (eleições), mas não legitimidade de exercício (erosão das instituições democráticas).
Antes de tudo, vamos listar os oito presidentes brasileiros (incluindo o atual) após a redemocratização. Na sequência:
- Sarney,
- Collor,
- Itamar Franco,
- Fernando Henrique Cardoso,
- Lula,
- Dilma Rousseff,
- Michel Temer
- Jair Bolsonaro.
Os 5 motivos que tornam o governo Bolsonaro anormal
Respondendo à pergunta que abre este texto, há ao menos cinco elementos que permitem caracterizar a presidência de Jair Bolsonaro como uma presidência excepcional. Isto é, fora do comum, do habitual, uma exceção.
Eis uma exposição desses cinco elementos:
1. Diferentemente de qualquer um de seus antecessores, a presidência de Jair Bolsonaro assume a propaganda não como um aspecto pontual e secundário, restrito ao período mais próximo das eleições. A propaganda de Bolsonaro é permanente e começa quando ele assume a presidência. Ele age como um candidato à reeleição desde o primeiro dia de seu mandato. E essa propaganda não tem um caráter de mostrar as realizações do governante. É a pessoa dele que assume o primeiro plano. Ele é mostrado continuamente em lives, motociatas e comícios. A sua intensa relação com as redes sociais reforça essa mobilização permanente da imagem de Bolsonaro junto a um público de seguidores entusiasmado e fiel.
2. De modo diverso de todos os presidentes brasileiros pós-democratização, Jair Bolsonaro age sistematicamente de modo a confundir, diluir ou apagar as fronteiras entre o privado e o público no exercício da presidência. O fato de que ele faça lives semanais no Palácio da Alvorada, manifestando a sua opinião pessoal sobre os mais diversos assuntos, desde a pesca da tainha até questões de interesse público como saúde e educação tem contribuído decisivamente para borrar as fronteiras entre o privado e o público. Quando ele emite em suas lives uma fala como a de que a vacina contra a Covid pode estar ligada ao aumento de casos de aids, ele sugere, junto ao público, que se trata apenas de uma opinião pessoal. A intenção desse estilo de comunicação é apresentar Bolsonaro como um “cidadão comum”, que tem direito de pensar e de falar o que bem entende. Essa estratégia permite que seja apagada a noção de responsabilização política do detentor de cargo eletivo.
3. De modo inédito na presidência, Jair Bolsonaro agiu desde o início de seu governo de modo a desacreditar deliberadamente a imprensa, tanto a televisiva quanto a impressa. Órgãos tradicionais de imprensa como a “Folha de S.Paulo”, a “Revista Veja” e os jornais impressos e televisivos das Organizações Globo – e não só eles – foram e continuam sendo atacados pelo presidente por supostamente publicarem inverdades sobre seu governo e sua família. Esses ataques não se limitam aos órgãos de imprensa, mas também são dirigidos pessoalmente a jornalistas. Um exemplo desse tipo de ataque é uma ocasião na qual ele disse a um jornalista: “Vontade é de encher tua boca de porrada”. Esses ataques se inserem em uma estratégia mais ampla de Bolsonaro, que é a de minar a credibilidade do jornalismo como um todo e construir a sua própria rede paralela de comunicação, feita de canais no YouTube, perfis no Facebook e no Instagram, grupos no Telegram e no WhatsApp. Isso permite que essa rede controle o que pode passar como “informação” junto ao seu público, bem como desqualificar como supostamente distorcidas as informações sobre seu governo levantadas pela imprensa.
4. Nenhum outro presidente pós-redemocratização promoveu um ataque tão amplo às universidades públicas e aos institutos de pesquisas governamentais, como o INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), que monitora queimadas e desmatamentos, e o IPEA (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas), que pesquisa dados econômicos e sociais, dentre muitos outros. Ataques pessoais foram corriqueiros nesse sentido, como o de Bolsonaro ao diretor do INPE, Ricardo Galvão, quando da publicação de dados que mostravam o aumento do desmatamento na Amazônia durante o seu governo. Seu segundo ministro da educação, Abraham Weintraub, promoveu uma campanha agressiva contra as universidades públicas, apoiada apenas em imagens-espantalho tais como as das “orgias” e das “drogas”, destituídas de qualquer lastro na realidade. Trata-se de outro braço da estratégia de comunicação do governo Bolsonaro: desacreditar qualquer crítica ao seu desempenho como presidente, ainda que as informações que as embasem venham de universidades e centros de pesquisa internacionalmente reconhecidos por sua credibilidade científica.

5. De modo completamente inédito em relação a todos os presidentes brasileiros do período pós-redemocratização, o governo Bolsonaro agiu sistematicamente de modo a desacreditar o sistema eleitoral do país, incitando seus seguidores a uma desconfiança com relação às urnas eletrônicas, ao Tribunal Superior Eleitoral e ao sistema de apuração dos votos. Essa estratégia começou com a sua campanha pelo voto impresso, que foi derrotada no âmbito do Legislativo. Ela não parou por aí. Bolsonaro, para a surpresa do mundo, convocou quarenta embaixadores para repetir suas afirmações infundadas sobre a credibilidade do sistema eleitoral. A razão de toda essa estratégia de comunicação é tornar plausível junto ao seu público seguidor uma contestação ao resultado das eleições em caso de derrota. É preciso repetir: nenhum presidente eleito fez isso antes no Brasil. Essa é claramente uma estratégia de ameaça à democracia.

Mais 5 fatores que mostram que o governo Bolsonaro está fora do padrão democrático
É preciso que fique claro que o governo de Bolsonaro é um conjunto de campanhas de comunicação.
Há outros elementos no governo Bolsonaro que estão claramente fora do padrão democrático. Limito-me a tão somente indicá-los para não tornar este texto mais longo:
6. promoção de uma campanha continuada de descredibilização do sistema judiciário brasileiro, principalmente do Supremo Tribunal Federal;
7. promoção continuada de campanhas de negacionismo da ciência, notadamente com relação às políticas públicas de saúde;
8. promoção de atritos diplomáticos gratuitos e contraproducentes com países estrangeiros, notadamente com a China e a França, sempre que isso pudesse reverter em estratégia de fidelização de seu público de seguidores;
9. exibição recorrente de seu poder de estar acima das leis, como quando se exibe em suas inúmeras “motociatas” sem o uso de capacete;
10. atitude sistemática de proferir falas desrespeitosas em relação a minorias, com especial destaque para as mulheres e as pessoas homossexuais.
Não se trata de uma diferença de grau entre Jair Bolsonaro e seus antecessores. É uma diferença de espécie. Em todos os elementos aqui reunidos, não há qualquer paralelo entre seu governo e os governos presidenciais anteriores pós-redemocratização no Brasil, sejam de esquerda, de centro, ou de direita.
Bolsonaro quer se perpetuar no poder
A tendência do governo Bolsonaro é a de produzir concentração de poder na presidência, minando e reduzindo a possibilidade de controle de seus atos por parte de outros poderes. Ele age de modo a construir um público seguidor fiel ao carisma de sua pessoa.
Reforçando esse laço por meio de propaganda virtual ininterrupta, ele espera produzir uma frente de apoio que, no limite, o torne poderoso a ponto de tentar modificar as regras constitucionais vigentes, de modo a perpetuar o seu poder.
Isso poderia vir, por exemplo, a partir de um aumento de ministros do STF, como ele mesmo falou dias atrás – ministros que seriam indicados por ele – e da permissão, via emenda constitucional, de concorrer a um terceiro mandato ou mesmo a um quarto mandato e, assim, indefinidamente.
É preciso chamar as coisas pelo seu nome. A imprensa internacional, diferentemente da imprensa brasileira, considera Jair Bolsonaro um político de extrema-direita. Vejam bem, não um político de direita, mas de extrema-direita.
A imprensa internacional também considera que ele não demonstra compromisso com a democracia.
É preciso pensar em tudo isso. Também no caminho do excepcional se corre o risco de perder a possibilidade do normal.
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