‘Tempo NÃO é dinheiro. Tempo é o tecido da nossa vida’

Discurso de Antonio Candido que chegou até mim depois de ser compartilhado pela bibliotecária Kathléen Carneiro.
Discurso de Antonio Candido que chegou até mim depois de ser compartilhado pela bibliotecária Kathléen Carneiro.

Há umas três semanas tomei conhecimento do texto acima, de Antonio Candido, maravilhoso, que foi compartilhado pela Kathléen Carneiro, escritora e bibliotecária da melhor biblioteca de BH.

Perguntei a ela onde estava publicado e ela disse que estava no livro “A gente mira no amor e acerta na solidão“, da psicanalista Ana Suy.

Pesquisando mais um pouquinho, descobri que o grande intelectual Antonio Candido fez esse discurso durante a inauguração da biblioteca da Escola Nacional Florestan Fernandes, do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), em 5 de agosto de 2006.

Na ocasião, ele também disse:

“O livro mata a fome da cabeça, serve para a instrução e para a imaginação, direitos tão importantes quanto a alimentação.”

Mas foi graças à bela reportagem de Verena Glass, publicada na extinta Agência Carta Maior (e felizmente reproduzida no site da Assufrgs), que fez a cobertura da inauguração da biblioteca, que pude ver tudo o que Antonio Candido disse na ocasião, e que até hoje ressoa entre nós, sendo reproduzido em todo canto (inclusive no livro da Ana Suy).

Aí está o trecho da reportagem:

“A escravidão do trabalho aliado à da ignorância, imposta às classes mais pobres, é, para o professor, um dos aspectos mais pérfidos do capital. ‘Acho que uma das coisas mais sinistras da história da civilização ocidental é o famoso dito atribuído a Benjamim Franklin, “tempo é dinheiro”. Isso é uma monstruosidade. Tempo não é dinheiro. Tempo é o tecido da nossa vida, é esse minuto que está passando. Daqui a 10 minutos eu estou mais velho, daqui a 20 minutos eu estou mais próximo da morte. Portanto, eu tenho direito a esse tempo; esse tempo pertence a meus afetos, é para amar a mulher que escolhi, para ser amado por ela. Para conviver com meus amigos, para ler Machado de Assis: isso é o tempo. E justamente a luta pela instrução do trabalhador é a luta pela conquista do tempo como universo de realização própria. A luta pela justiça social começa por uma reivindicação do tempo: “Eu quero aproveitar o meu tempo de forma que eu me humanize”. As bibliotecas, os livros, são uma grande necessidade de nossa vida humanizada. Portanto, parabéns ao MST pela abertura desta biblioteca, porque o amor pelo livro nos refina e nos liberta de muitas servidões‘, concluiu.”

Os grifos em negrito foram meus. Peço licença para destacá-los mais uma vez, a seguir:

  • “Tempo não é dinheiro.”
  • “Eu tenho direito a esse tempo.”
  • “(…) conquista do tempo como universo de realização própria”
  • “o amor pelo livro nos refina e nos liberta de muitas servidões”

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Quem me acompanha aqui no blog sabe que, mesmo sem ainda conhecer esse lindo texto de Antonio Candido, tenho defendido mais ou menos as mesmas coisas que ele defendeu nesse discurso de 2006.

Vocês percebem que o avanço da tecnologia não está nos dando mais tempo livre para vivermos a nossa vida – pelo contrário? Que estamos trabalhando cada vez mais, da hora em que acordamos à hora em que vamos dormir, tendo que estar sempre disponíveis (via WhatsApp ou o que for), guiados por uma eterna falsa urgência?

E não é só trabalho. Passamos o dia inteiro, inclusive os minutos de folga, mergulhados em telas, sem descansar nem por um segundo, seja lendo sobre os outros, nos informando sobre alguma coisa (importante ou imbecil) ou produzindo, nós mesmos, conteúdos para os outros verem.

Roubaram nosso tempo. Roubaram! E ninguém gritou “pega ladrão”. Pelo contrário, aceitamos esse roubo com uma passividade sinistra.

Só que, como bem disse Antonio Candido, tempo NÃO é dinheiro. Não foi esse o roubo cometido pelos donos do poder, contado em moedas. Tempo é VIDA.

Ao roubarem nosso tempo, roubaram um pedaço importante e significativo de nossas vidas. Roubaram nosso descanso, nossa instrução, nosso aprendizado, nossa leitura (que “nos refina e nos liberta de muitas servidões”), nossos afetos, nossa paz, nossa capacidade de pensar e questionar, nosso senso crítico, nossa criatividade (substituída por um prompt para a IA), nossa ousadia, nossa atenção, nossa liberdade.

Tudo isso, como ele bem disse, é um direito nosso, e também uma conquista, que fundamentam nossa realização própria.

É por isso que muita gente tem preferido abrir mão de empregos “dos sonhos” em troca de mais tempo para viver. Porque há séculos nos prometem que todas as revoluções tecnológicas estão sendo feitas em prol do nosso bem-estar, desde os tempos da primeira revolução industrial, mas nunca foram. Em muitas situações, elas vieram para nos escravizar ainda mais. 

Antonio Candido soltou esta pérola maravilhosa, despretensiosa, em meio a uma inauguração de uma biblioteca (não por acaso, já que bibliotecas são espaços de conhecimento, de aprendizado), lá em 2006, aos 88 anos. Felizmente, sua sabedoria chegou até mim, graças a três mulheres:

  1. a jornalista Verena Glass, que registrou a fala dele em reportagem,
  2. a psicanalista Ana Suy, que pinçou essa fala e a publicou em seu livro,
  3. e a bibliotecária Kathléen Carneiro, que gostou do que leu no livro, fotografou aquela página e a compartilhou em seu Instagram.

(E eu, em algum momento de folga, entrei nessa rede social e cheguei até ela. Então, sim, o bom uso do tempo também pode se dar dessa forma. Mas sou eu que tenho que decidir isso, já que o tempo é MEU.)

O que foi pensado e dito há quase vinte anos faz mais sentido que nunca, hoje em dia.

Nunca deixem que alguém te diga que seu tempo é dinheiro.

Seu tempo é MUITO mais valioso que dinheiro. Seu tempo é sua vida. E, quando ele é tirado de você, é sua vida que fica cada vez mais curta.

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Por Cristina Moreno de Castro (kikacastro)

Mineira de Beagá, escritora, jornalista (passagem por Folha de S.Paulo, g1, TV Globo, O Tempo etc), blogueira há mais de 20 anos, amante dos livros, cinéfila, blueseira, atleticana, politizada, otimista, aprendendo desde 2015 a ser a melhor mãe do mundo para o Luiz. Autora dos livros A Vaga é Sua (Publifolha, 2010) e (Con)vivências (edição de autor, 2025). Antirracista e antifascista.

2 comments

  1. Quando li essa fala do Antônio Candido fiquei muito impactada, pois senti que algo tão valioso estava sendo tratado como supérfluo, já que somos ensinados de que tempo é dinheiro. Naquele momento, algo em mim se libertou. Dito isso, sua reflexão sobre como o nosso tempo tem sido roubado sem que a gente perceba me fez refletir ainda mais sobre algumas coisas que preciso melhorar para dar maior qualidade ao que tenho de mais precioso: meu tempo. Fico feliz que a reflexão que compartilhei te alcançou de gerou algo maior. Obrigada por nos fazer pensar!

    Kathléen Carneiro

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