Rosa Weber: o voto sobre aborto e um legado no STF

Rosa Weber, em foto de setembro de 2022, quando tomou posse como presidente do Supremo Tribunal Federal (STF). Ela se aposentou em 30.9.2023. Foto: Fellipe Sampaio/SCO/STF
Rosa Weber, em foto de setembro de 2022, quando tomou posse como presidente do Supremo Tribunal Federal (STF). Ela se aposentou em 30.9.2023. Foto: Fellipe Sampaio/SCO/STF

Leia os principais trechos do voto sobre o aborto no Brasil que Rosa Weber proferiu e acesse o texto da ministra aposentada do STF na íntegra

Nesta segunda-feira, 2 de outubro, Rosa Weber completa 75 anos – idade-limite para ser ministra do Supremo Tribunal Federal. Por isso, desde sábado (30) ela está aposentada do STF, após quase 12 anos como membro da mais alta Corte judicial do país.

Na última semana, vários foram os textos sobre o legado que a ministra Rosa Weber deixou ao STF e ao judiciário brasileiro. Meu favorito foi o escrito pelo professor de direito constitucional da USP e doutor em direito e ciência política Conrado Hübner Mendes, em sua coluna na “Folha de S.Paulo”.

Ele escreveu sobre as mudanças revolucionárias que ela conseguiu aprovar:

“Suas contribuições jurisprudenciais e institucionais merecem respeito. Em seu curto mandato na presidência do STF e do CNJ, que mal completou um ano, foi autora de mudanças transformadoras.

Rosa Weber propôs e aprovou no plenário do STF resolução que limitou o uso estratégico do pedido de vista para obstrução individual. No CNJ, propôs e foi derrotada em resolução que tentava limitar as festas da Justiça (…).

Mas conseguiu, na última semana de seu mandato, aprovar resolução que cria paridade de gênero para promoção de juízes a tribunais (…). Uma mudança revolucionária em tribunais que, em média, nunca tiveram mais que 20% de desembargadoras.”

Também destacou que Rosa Weber “tirou das gavetas casos urgentes”, como o marco temporal e o porte de drogas. E foi uma voz progressista no STF, estando “do lado vencedor em todos os casos que o tribunal celebra como progresso em direitos fundamentais”. Também foi importante para os trabalhadores, sendo “a mais arejada voz contra a precarização do trabalho”.

Por fim, o professor destacou que o voto de Rosa Weber sobre o aborto “é seu maior legado intelectual, e passa a integrar o cânone global sobre o tema”. “Nesse voto, homens poderão aprender o que é a dimensão social da maternidade, justiça reprodutiva e cidadania feminina”.

Conrado Hübner Mendes não foi o único a dizer isso. Coluna da jornalista Mônica Bergamo três dias depois da sessão de 22 de setembro destacou que o voto de Rosa Weber em defesa da descriminalização do aborto no Brasil “elevou o debate sobre o tema a um patamar inédito nos campos jurídico, político e social e pode ter o condão de voltar os olhos do mundo para o país”, segundo acadêmicas que se dedicam ao assunto.

O voto de Rosa Weber pela descriminalização do aborto no Brasil: leia na íntegra

Mas, afinal, o que disse Rosa Weber em seu voto tão importante, que ela proferiu no apagar das luzes de sua função como ministra do Supremo?

Ao longo de 129 páginas, ela esmiúça sua posição sobre o que chama de “uma das questões jurídicas mais sensíveis”, por envolver “uma teia de razões de segunda ordem de natureza ética, moral, científica, médica e religiosa“. E ainda “uma das questões mais sofisticadas, da perspectiva jurídica, ao lidar com um conflito significativo de direitos fundamentais”.

Não faz sentido eu transcrever aqui no blog um voto tão grande, mas faço questão de colocar o trecho abaixo, irretocável (com grifos meus):

“A gravidez impõe tensão significativa ao corpo da mulher, envolvendo inevitavelmente mudanças fisiológicas e biológicas extremas, com alteração hormonal para preparar o corpo. Para algumas mulheres, a gravidez e o parto podem implicar doenças físicas e estresse máximo que alteram a vida ou até mesmo provocam a morte, em razão dessas alterações.

Ou seja, se é certo que a gestação é um fenômeno essencialmente biológico, é igualmente certo que a maternidade e a paternidade traduzem conceitos mais amplos, enquanto envolvem processos psicológicos, culturais e sociais, que podem derivar de gestação própria ou de outros contextos, a exemplo da maternidade socioafetiva.

A opção pela maternidade pode até refletir estrutura discriminatória de gênero, fundada no conceito hierárquico de família e na distribuição de papeis sociais estáticos.

Nessa perspectiva e modo de compreender o mundo, a partir da lente da mulher, a maternidade não há de derivar da coerção social fruto de falsa preferência da mulher, mas sim do exercício livre da sua autodeterminação na elaboração do projeto de vida.

Compete à mulher, na fruição de seus direitos fundamentais, tomar a decisão pela maternidade, por meio da gravidez ou por outras fórmulas, a exemplo da adoção.

Portanto, a partir das vertentes constitutivas da dignidade da pessoa humana, cujos conteúdos são densificados na autonomia da vontade e na saúde psico-físico-moral, outra conclusão não se justifica: a maternidade é escolha, não obrigação coercitiva. Impor a continuidade da gravidez, a despeito das particularidades que identificam a realidade experimentada pela gestante, representa forma de violência institucional contra a integridade física, psíquica e moral da mulher, colocando-a como instrumento a serviço das decisões do Estado e da sociedade, mas não suas. Nesse contexto, ao Estado, por conduta negativa, compete respeitar as liberdades individuais da mulher.”

O voto de Rosa Weber não se baseia em achismos: ela traz inúmeros dados, estatísticas e informações concretas sobre como o assunto é tratado em todo o mundo – que “revelam a tendência contemporânea do constitucionalismo de colocar, no panorama internacional, o problema da saúde sexual e reprodutiva das mulheres como uma questão de saúde pública e de direitos humanos.”

A ministra eleva muito o debate, ao tratar de assuntos como:

  • o contexto histórico dos direitos das mulheres (que, até outro dia, não podiam nem mesmo ter uma profissão sem autorização do marido),
  • os direitos sexuais e reprodutivos,
  • Justiça social reprodutiva,
  • os deveres de proteção,
  • a criminalização do aborto como resposta para a tutela da vida humana
  • e os limites do Estado.

Ela mostra que a criminalização da interrupção voluntária de uma gravidez atinge os direitos das mulheres “à liberdade, à autodeterminação, à intimidade, à liberdade reprodutiva e à sua dignidade”, além de ser incoerente com o modelo constitucional no Brasil.

Defende ainda que a forma mais eficaz de proteger um feto e a vida da mulher não é a criminalização do aborto, mas sim “a justiça social reprodutiva, fundada nos pilares de políticas públicas de saúde preventivas na gravidez indesejada.”

Charge de Laerte sobre aborto, publicada na 'Folha de S.Paulo' em agosto de 2020.
Charge de Laerte sobre aborto, publicada na ‘Folha de S.Paulo’ em agosto de 2020.

‘Fomos silenciadas!’ A conclusão do voto de Rosa Weber sobre o aborto

Por fim, num tópico chamado “Da solução normativa”, Rosa Weber conclui seu raciocínio – e seu voto – brilhantemente:

“A questão da criminalização da decisão, portanto, da liberdade e da autonomia da mulher, em sua mais ampla expressão, pela interrupção da gravidez perdura por mais de setenta anos em nosso país. À época, enquanto titular da sujeição da incidência da tutela penal, a face coercitiva e interventiva mais extrema do Estado, nós mulheres não tivemos como expressar nossa voz na arena democrática. Fomos silenciadas! Não tivemos como participar ativamente da deliberação sobre questão que nos é particular, que diz respeito ao fato comum da vida reprodutiva da mulher, mais que isso, que fala sobre o aspecto nuclear da conformação da sua autodeterminação, que é o projeto da maternidade e sua conciliação com todos as outras dimensões do projeto de vida digna.

A vida digna e aceita como correta, do ponto de vista da moralidade majoritária social da década de 1940, excluía as mulheres da condição de sujeito de direito, seja ele de perfil político-democrático, seja de perfil de autonomia cívica. A ausência de representação política, a condição normativa atribuída, a cidadania de segunda classe a qual estavam categorizadas, permitiram sua fala por meio de representação da família, estrutura hierárquica e fundada no pater familia. A maternidade e os cuidados domésticos compunham o projeto de vida da mulher, qualquer escolha fora desse padrão era inaceitável e o estigma social, certeiro.

Transcorridas mais de oito décadas, impõe-se a colocação desse quadro discriminatório na arena democrática para uma deliberação entre iguais, com consideração e respeito. Agora a mulher como sujeito e titular de direito. Aí uma das razões pela qual convoquei a audiência pública. Oportunizar o procedimento democrático do debate público, com pluralidade de vozes, ante o caráter complexo e policêntrico do problema.

A dignidade da pessoa humana, a autodeterminação pessoal, a liberdade, a intimidade, os direitos reprodutivos e a igualdade como reconhecimento, transcorridas as sete décadas, impõem-se como parâmetros normativos de controle da validade constitucional da resposta estatal penal.

Ante as razões expostas, julgo procedente, em parte, o pedido, para declarar a não recepção parcial dos art. 124 e 126 do Código Penal, em ordem a excluir do seu âmbito de incidência a interrupção da gestação realizada nas primeiras doze semanas.

É como voto.”

Lula deveria, sim, escolher ministra mulher para o STF

O presidente Lula vem sendo cobrado, com razão, por grande parte de seus eleitores, para escolher uma ministra mulher para ocupar o cargo agora vago por Rosa Weber.

E ele tem respondido que gênero e raça não são critérios de escolha.

Lula, em 25.9.2023, quando disse que gênero e cor não são critério para escolha para o STF. Foto: Joédson Alves / Agência Brasil.
Lula, em 25.9.2023, quando disse que gênero e cor não são critério para escolha para o STF. Foto: Joédson Alves / Agência Brasil.

Mas deveriam ser, Lula. E esse belíssimo voto de Rosa Weber sobre um direito fundamental das mulheres é exemplo disso. Assim como a regra vitoriosa que ela criou de paridade de gênero na promoção de juízes.

São pautas urgentes e que só uma mulher, de preferência progressista, consegue encampar.

Como bem disse Rosa Weber em mais um trecho de seu voto, “ainda não cessou” e “é permanente” a busca pelo fim da discriminação motivada pelo gênero, pois:

“a expansão dos direitos femininos, além de fruto de uma construção gradual, data de tempo muito recente da história contemporânea e, por isso mesmo, não prescinde de constantes avanços, de reconhecimento incessante e de instrumentos jurídicos aptos a fazerem prevalecer a condição de igualdade que deve existir e persistir, por imperativo constitucional, entre homens e mulheres“.

É vergonhoso que a mais alta Corte do Judiciário brasileiro só tenha tido três mulheres ministras até hoje (além de Rosa, Cármen Lúcia e a pioneira Ellen Gracie, que se aposentou em 2011).

Qual dos outros nove homens brancos que compõem o STF atualmente teria a delicadeza e firmeza de Rosa Weber para percorrer o árduo calo do aborto em nossa sociedade?

Desconfio que nenhum.

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Por Cristina Moreno de Castro (kikacastro)

Mineira de Beagá, jornalista (passagem por Folha de S.Paulo, g1 e TV Globo, UOL, O Tempo etc), blogueira há 20 anos, amante dos livros, poeta, cinéfila, blueseira, atleticana, politizada, otimista, aprendendo desde 2015 a ser a melhor mãe do mundo para o Luiz. Antirracista e antifascista.

5 comentários

  1. Gostei muito do post!
    Sou afavor do aborto desde q virei mãe, q foi quando tomei conhecimento de como é difícil passar por uma gestação de 9 meses e todo mundo te olha como se ñ fosse nada.
    E o pós parto tbm foi difícil, fiz cesária. E depois vem a loucura da amamentação, demorou um pouco para pegar o jeito, um dos seios ficou muito machucado, mas consegui cuidar disso. Precisei muito de apoio do meu esposo e da minha família, ficava muito sensível, chorosa e cansada. Minja bebê sofreu muito com cólicas, gases até os 4 meses, chorava muito, eu ficava desesperada.
    Tudo muda radicalmente, o físico, o psicológico e o emocional, então se a mulher q engravidou por algum motivo ñ tem estrutura, apoio de ninguém e ñ quer seguir adiante com a gestação eu apoio, pq é muita responsabilidade e só sabe que passa pelo papel de mãe. A mãe é a responsável por tudo! É a culpada por tudo! É a heroína quando convêm! É a doida. É a mãe, sempre a mãe.

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