Bolsonaro normalizou o ódio e as fake news no Brasil

Jair Bolsonaro no PL, em 30 de março de 2023. Foto: Natanael Alves/PL
Jair Bolsonaro no PL, em 30 de março de 2023. Foto: Natanael Alves/PL

Passados quatro meses de respiro, sem um presidente destilando ódio em cada discurso – contra jornalistas, mulheres, indígenas, negros, pobres, gays ou qualquer minoria –, acho que estou conseguindo começar a processar melhor o período de trevas que vivemos entre 2019 e 2022.

Ele será estudado com mais calma pelos historiadores e acadêmicos em geral, com muito mais embasamento, mas, ainda assim, me sinto uma observadora bem-informada e por isso vou trazer minhas percepções para meu blog.

Jair Bolsonaro é investigado por vários crimes durante seu governo, pelos quais eu espero que ele ainda seja julgado, condenado e punido. Fora esses listados no último link, houve ainda o genocídio dos indígenas yanomami e o caso das joias do Estado apropriadas por ele e sua mulher. E a cada hora o caldo entorna mais para o lado dele: enquanto escrevo este artigo, Bolsonaro é alvo de uma operação da Polícia Federal que apura pelo menos mais quatro crimes.

Brasil voltou ao mapa da fome no governo Bolsonaro. Caso de morte e desnutrição de yanomamis são os mais graves, um verdadeiro crime humanitário.
Brasil voltou ao mapa da fome no governo Bolsonaro. Casos de morte e desnutrição de yanomamis são os mais graves, um verdadeiro crime humanitário.

Bolsonarismo e o discurso de ódio

Mas, apesar de tudo isso ser nojento, acho que nem foi a consequência mais nefasta do bolsonarismo no Brasil.

O pior mesmo foi ele ter institucionalizado e normalizado o discurso de ódio em um país que, até pouco tempo atrás, era tido como pacífico, alegre e acolhedor.

Lembro direitinho quando, nas eleições de 2014, vazou uma conversa privada de um professor da UFMG. Seu interlocutor defendia Dilma Rousseff dizendo que o governo petista havia criado oportunidades aos mais pobres, criado universidades, cotas, dado a chance de jovens pretos da periferia terem ensino superior etc.

E disse algo mais ou menos assim: “Hoje a sua empregada doméstica pode pegar um avião e ir passear nas férias fora do Brasil”. Ao que o professor respondeu na seguinte linha: “Este é o problema. Eu NÃO QUERO que a minha empregada possa viajar para fora do Brasil. Eu não quero encontrar empregadas no aeroporto de Paris”.

Lembro que, naquela época, lá se vai quase uma década (Aécio Neves ainda não tinha sido morto e enterrado politicamente), eu fiquei estarrecida com essa fala do professor universitário. Chocada mesmo. Pensei: “Meus Deus, então é isso! O problema, para a galera de direita, é ver os pobres tendo oportunidades. Tudo se resume, mais uma vez, apenas a luta de classes”.

O triste é que hoje isso não nos choca mais. Esse discurso de ódio contra os pobres, pretos, favelados, menos escolarizados etc, foi normalizado pela extrema-direita que ocupou o poder no Brasil. Ouvimos ele ser repetido à exaustão nos últimos anos.

Discurso de Bolsonaro na ONU em 2019 chocou o mundo.

O que mudou em tão pouco tempo? Bolsonaro na presidência da República.

Se antes algumas pessoas pensavam assim, mas não tinham coragem de falar essas coisas em público (como eu disse, aquela conversa que vazou era privada), depois de Bolsonaro elas se sentiram autorizadas a falar. Afinal, o presidente da República, em pessoa, soltava frases como “As minorias têm que se curvar às maiorias” – e tantas outras.

Bolsonaro pegou vários discursos de ódio e institucionalizou esses discursos. Eles se tornaram o discurso oficial. Foi o mesmo que Hitler fez, por exemplo. Maltratar e até matar judeus, negros, ciganos, comunistas e gays se tornou normal, dentro desse discurso, na Alemanha sob o nazismo.

O ex-presidente Jair Bolsonaro após prestar depoimento à Polícia Federal (PF) sobre os ataques do dia 8 de janeiro em Brasília. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil - 26.4.2023
O ex-presidente Jair Bolsonaro após prestar depoimento à Polícia Federal (PF) sobre os ataques do dia 8 de janeiro em Brasília. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil – 26.4.2023

Fake news fortaleceram o bolsonarismo

O mais triste é constatar que havia, sim, muitos brasileiros como aquele professor da UFMG de dez anos atrás, que já pensavam desta forma e só esperavam um aval para deixar o armário e sair às ruas com bandeiras pedindo intervenção militar, tortura, fim do STF etc.

Quem eram eles? Estavam entre nossos professores, vizinhos, colegas de trabalho. Só não sabíamos que pensavam assim.

Mas houve um trabalho extra, tão danoso quanto este de disseminar o ódio, que ocorreu paralelamente no governo Bolsonaro, e que serviu para ampliar esse discurso bolsonarista, atingindo pessoas que há pouco tempo não pensavam assim.

Pronunciamento do presidente Jair Bolsonaro em 1/11/2022. Foto: Isac Nóbrega/PR
Pronunciamento do presidente Jair Bolsonaro em 1/11/2022. Foto: Isac Nóbrega/PR

Foi o uso da máquina do Estado, patrocinado por grupos de empresários muito ricos, para espalhar mentiras (as famosas fake news). Com a facilidade de haver redes sociais e aplicativos de mensagens instantâneas, tipo WhatsApp e Telegram, para ajudar a disseminar esses conteúdos como fogo em pólvora.

Assim foram criadas teorias conspiratórias que mexiam com os valores mais profundos das pessoas, inclusive seus valores religiosos. Um exemplo clássico dessas fake news, ainda de 2018, é o da mamadeira de piroca. No ano passado atualizaram para os banheiros unissex.

Infografia com as 10 maneiras de identificar as fake news.

Pessoas às vezes de boa fé, às vezes inteligentes, foram bombardeadas com esses conteúdos por meses, não buscaram o contraponto, não buscaram outras fontes de informação para além dos vídeos com alerta de “Encaminhado com frequência” do zap-zap, e foram acreditando.

Tela de WhatsApp mostra vídeo com alerta de "encaminhado com frequência, que é sinal para disseminação viral, e possível fake news.
Desconfie de todo conteúdo que chegar pelo WhatsApp com o alerta de “encaminhado com frequência”.

Possivelmente já tinham dentro de si um espaço aberto para os discursos de ódio. Mas esse espaço foi cavado com afinco – e com uso dos recursos do Estado, o que é pior – pelo governo de Bolsonaro. O funcionamento do “gabinete do ódio“, responsável por esse trabalho sujo, já foi esmiuçado.

Um lado cruel dessas fake news é que não foram usadas só para atribuir a pecha de maníaco sexual a petistas. O mecanismo foi usado até para desacreditar as vacinas em plena pandemia da Covid-19!

Resultado: a vacinação como um todo despencou por causa dessas mentiras, e até doenças que estavam controladas há anos, como sarampo e poliomelite, agora correm o risco de voltar.

Charge do Duke ironizando fala de Bolsonaro em dezembro de 2020: “Lá no contrato da Pfizer, está bem claro nós (a Pfizer) não nos responsabilizamos por qualquer efeito colateral. Se você virar um jacaré, é problema seu”.

O ódio (e a violência) entre os jovens e a resposta no Congresso

Uma terceira frente do ódio normalizado por Bolsonaro e facilitado pela internet é a que vimos neste início de ano hediondo, com crianças e adolescentes fazendo ameaças contra escolas, e uns contra os outros. Lembrando que o acesso às armas e o discurso armamentista também foi insuflado durante o bolsonarismo.

Charge mostra Bolsonaro atirando com arma de fogo contra o mar.
Charge de Benett na “Folha de S.Paulo”, em 2020.

Depois de tanta disseminação de mentiras, que colocaram até as instituições democráticas em risco no Brasil, e de discursos de ódio, que estão levando até nossas crianças e adolescentes a extremismos violentos, surgiu uma reação.

Agora um grupo, com o Ministério da Justiça do governo Lula à frente, finalmente tenta regulamentar a internet. Mas o PL 2630, que tinha essa intenção, virou alvo de bolsonaristas, evangélicos e das Big Techs, como Google e Facebook, que estavam preocupadas com o papel que lhes foi atribuído de conferir os conteúdos perversos. Sua votação acabou adiada.

Esse projeto de lei ainda tem muito a melhorar, mas foi um começo. Qualquer iniciativa que tente coibir a desinformação e a disseminação de discursos de ódio deve ser aprimorada e incentivada. Outros países estão apanhando do mesmo jeito, buscando soluções para problemas parecidos.

O que não dá é para continuar essa terra de ninguém. Precisamos de soluções que combatam o neonazismo crescente e a disseminação mal-intencionada de notícias falsas. Precisamos que os responsáveis sejam punidos – inclusive as plataformas que permitem abusos.

Qual será a melhor solução? Aquela que faça cumprir a Constituição e o Código Penal com agilidade, sem ferir a liberdade de expressão. Que a sociedade civil, a academia, o governo federal e os demais Poderes se unam para buscar o melhor para todos.

Antes que seja tarde demais.

Outros textos sobre comunicação e internet:

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Por Cristina Moreno de Castro (kikacastro)

Mineira de Beagá, escritora, jornalista (passagem por Folha de S.Paulo, g1, TV Globo, O Tempo etc), blogueira há mais de 20 anos, amante dos livros, cinéfila, blueseira, atleticana, politizada, otimista, aprendendo desde 2015 a ser a melhor mãe do mundo para o Luiz. Autora dos livros A Vaga é Sua (Publifolha, 2010) e (Con)vivências (edição de autor, 2025). Antirracista e antifascista.

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