Filme ‘O Lodo’, de Helvécio Ratton: o absurdo da realidade

Cena do filme 'O Lodo', de Helvécio Ratton, baseada na obra de Murilo Rubião.
Cena do filme 'O Lodo', de Helvécio Ratton, baseado na obra de Murilo Rubião.

Filme ‘O Lodo’, do cineasta mineiro Helvécio Ratton, adaptado de um conto de Murilo Rubião, estreia nos cinemas nesta quinta-feira (13); veja resenha e trailer 

Vale a pena ver no cinema: O LODO
2023 | 1h34 de duração | 14 anos | nota 8

Capa do livro 'Obra completa' de Murilo Rubião.Há alguns meses li o conto O Lodo, de Murilo Rubião, na edição do centenário do escritor mineiro, da Companhia das Letras, que reúne sua obra completa.

A história de dez páginas não chegou a me marcar na época. Pelo menos não tanto quanto “Teleco, o coelhinho” e “O Edifício”. Mas já deu para entender que Rubião era nosso Kafka. Gostava de misturar realismo fantástico, terrorismo psicológico, absurdos desconcertantes e humor.

Já o cineasta Helvécio Ratton (do meu querido “Menino Maluquinho“) não só leu o conto, numa versão que ele disse ter oito páginas, e se sentiu particularmente marcado por ele, como decidiu transformá-lo em um filme com 1 hora e 34 minutos de duração, que estreia em várias capitais nesta quinta-feira, 13 de abril.

Como passar para a tela do cinema um roteiro de 94 minutos a partir de um conto de poucas páginas? Neste caso, foi com muita criatividade e imaginação.

O diretor Helvécio Ratton, do filme 'O Lodo'.
O diretor Helvécio Ratton, do filme ‘O Lodo’. Foto: Divulgação

Eis a sinopse:

“Manfredo [no conto é Galateu], funcionário de uma empresa de seguros, se sente deprimido e procura um psiquiatra, o Dr. Pink. O médico afirma que ele tem um verdadeiro lodaçal dentro de si e quer saber de seu passado, mas há algo que Manfredo não deseja revelar e ele abandona o tratamento. O Dr. Pink passa, então, a persegui-lo, até mesmo em terríveis pesadelos. O passado volta de repente e a vida de Manfredo se transforma num verdadeiro inferno.”

Tudo isso efetivamente acontece também no conto. Até mesmo alguns diálogos são idênticos (como a frase-emblema, presente também no trailer: “Vim atrás de clínico, não de padre”). Mas o roteiro de Ratton e L. G. Bayão preencheu alguns buracos. Imaginou detalhes da rotina fleumática de Manfredo em casa. De sua relação com os colegas de trabalho. E daquilo em seu passado, seu lodo, que lhe causou tanto medo que o analista descobrisse.

Por toda essa fidelidade ao original, recomendo que todos leiam o conto de Murilo Rubião, mas apenas depois de ver o filme de Ratton. Afinal, a maior graça de ambos é o suspense e a tensão em torno do personagem central, seus pesadelos se fundindo à realidade. Ficamos angustiados junto com ele, tentando entender como aquele inferno em que ele se meteu poderá se resolver, se é que se resolverá.

Elenco do Grupo Galpão em ‘O Lodo’

Além de ter levado o clássico do Ziraldo para a telona, em 1995, Helvécio Ratton também dirigiu outros filmes excelentes, como “Batismo de Sangue”, “Uma Onda no Ar”, “O Segredo dos Diamantes” e “O Mineiro e o Queijo”.

Mas o crítico Inácio Araújo escreveu, na “Folha de S.Paulo”, que “existem algumas razões para supor que ‘O Lodo’ seja o melhor trabalho do diretor Helvécio Ratton”.

Fiquei me perguntando se é mesmo o melhor. Ainda acho (suspeitissimamente), que Maluquinho é a grande obra-prima de Ratton. Mas este filme de agora mantém seu alto nível de fotografia, edição, som (qualidade do som no Brasil é coisa para poucos filmes, e os do Ratton sempre tiveram essa preocupação), e elenco.

Eduardo Moreira, ator do Grupo Galpão, interpreta o protagonista do filme 'O Lodo', Manfredo.
Eduardo Moreira, ator do Grupo Galpão, interpreta o protagonista do filme ‘O Lodo’, Manfredo.

Vale dedicar um espaço inteiro ao elenco, principalmente ao protagonista Eduardo Moreira, um dos fundadores do Grupo Galpão. Ele nos faz sentir sua angústia, medo e confusão mental com a mesma maestria que, digamos, Brendan Fraser faz com seu personagem premiado de “A Baleia“. Praticamente suamos junto com Manfredo, e sentimos sua dor quando ele é ferido.

Haja lodo!

Mas outros atores desse patrimônio brasileiro do teatro que é o Grupo Galpão estão também no filme: Inês Peixoto (a irmã Epsila), Teuda Bara (a empregada Sirlene), Fernanda Vianna (a namorada) e Paulo André (o advogado).

O restante do elenco também é todo mineiro, com destaque para Renato Parara, que faz o irritante psicanalista, e Cláudio Márcio, que faz o menino Zeus.

Renato Parara, Inês Peixoto e Cláudio Márcio em cena do filme 'O Lodo'.
Renato Parara, Inês Peixoto e Cláudio Márcio em cena do filme ‘O Lodo’.

E existe ainda uma personagem especial neste filme, nas palavras do próprio Ratton, em seu discurso de abertura na pré-estreia, que aconteceu na última terça-feira (11): Belo Horizonte!

Ruas, praças e edifícios famosos da capital mineira compõem a cena e dão ritmo à vida de Manfredo, do desânimo ao solavanco que vem depois.

Prestigiem o cinema nacional!

No mesmo discurso, logo antes da exibição do filme em pré-estreia, Ratton comentou que ele levou muito mais tempo que o normal para ser concluído, atropelado primeiro pela pandemia da Covid-19 e depois pela ignorância que assolou o país durante o bolsonarismo (e nesse momento o diretor recebeu uma salva de palmas da sala lotada do Cineart Ponteio).

Pré-estreia do filme 'O Lodo', de Helvécio Ratton, lotou sala do Ponteio, em Belo Horizonte no dia 11 de abril.
Pré-estreia do filme ‘O Lodo’, de Helvécio Ratton, lotou sala do Ponteio, em Belo Horizonte no dia 11 de abril. Lá na frente, Ratton (com o microfone), a produtora Simone Matos, e o elenco. Foto: CMC / blog da kikacastro

E ele concluiu pedindo que as pessoas ali dentro, caso gostassem do filme, não deixassem de recomendá-lo aos amigos. Porque é preciso resgatar essa volta ao cinema pós-pandemia e resgatar a produção de audiovisual e a produção cultural nacional.

(Por isso, aproveito a deixa e o pedido de Ratton para falar a vocês que me leem até agora: assistam ao filme “O Lodo”! Prestigiem o cinema nacional! Resgatem esta sétima arte, tão bonita e tão importante!)

Confesso que, nesta hora, fiquei bastante emocionada. Desde antes da pandemia eu não via uma sala de cinema assim tão cheia, como estava aquela. E ainda com pessoas que tinham saído de casa e atravessado a cidade para ver uma produção nacional, fora do streaming, feita a duras penas com a falta de incentivo corrente naquele desgoverno que ocupou o Brasil por quatro anos.

Fiquei arrepiada. Fiquei feliz. Será que finalmente nosso lodo está sendo extirpado?

Seja como for, este não é um filme sobre lodos coletivos, mas, sim, sobre nossas memórias – e pequenas tragédias – individuais.

Sobre culpa e expiação. Sobre olhar para dentro e encontrar nossas fragilidades, com todo o terror que elas são capazes de nos provocar.

“Você pode enterrar o passado, mas um dia tudo volta”, diz o slogan do filme.

Acho que muitos espectadores se identificarão com Manfredo. E é isso o que torna o fantástico de Rubião/Ratton tão interessante. Nada é mais absurda que a realidade, afinal.

Assista ao trailer do filme ‘O Lodo’:

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Por Cristina Moreno de Castro (kikacastro)

Mineira de Beagá, escritora, jornalista (passagem por Folha de S.Paulo, g1, TV Globo, O Tempo etc), blogueira há mais de 20 anos, amante dos livros, cinéfila, blueseira, atleticana, politizada, otimista, aprendendo desde 2015 a ser a melhor mãe do mundo para o Luiz. Autora dos livros A Vaga é Sua (Publifolha, 2010) e (Con)vivências (edição de autor, 2025). Antirracista e antifascista.

2 comments

  1. O filme entra hoje na programação do Centro Cultural Unimed-BH Minas (espaço do Minas Tênis Clube aberto também aos não sócios) e na próxima terça-feira, dia 18, a seção das 20h será comentada por Helvécio Ratton, pela produtora Simone Matos e os atores Eduardo Moreira e Inês Peixoto. É preciso comprar logo os ingressos no site do clube, pois a sala do cinema é pequena.

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