‘Argentina, 1985’: punição pelos horrores de uma ditadura militar

Cena do filme "Argentina, 1985" mostra Julio César Strassera e sua equipe de assistentes.
Cena do filme "Argentina, 1985" mostra Julio César Strassera e sua equipe de assistentes.

Vale a pena ver no Prime Video: ARGENTINA, 1985
2022 | 2h20 de duração | Nota 8

Durante os sete anos da última ditadura militar imposta à Argentina, mais de 30 mil pessoas foram mortas.

Assim que a ditadura foi derrubada, diferentemente do que aconteceu no Brasil, lá houve um julgamento dos comandantes das Forças Armadas que coordenaram o massacre – o ditador Videla à frente.

Esse julgamento é retratado pelo longa “Argentina, 1985”, que venceu o Globo de Ouro como melhor filme estrangeiro e muito provavelmente também levará a mesma estatueta no Oscar. Ele pode ser visto pelos assinantes do serviço de streaming Prime Video.

Pela primeira vez na história, uma junta militar foi julgada e condenada por um tribunal civil. Quem coordenou o levantamento de provas foi o promotor Julio César Strassera, morto em 2015, que no filme é interpretado pelo excelente ator Ricardo Darín.

Ricardo Darín (dir.) e Peter Lanzani, que interpretam Julio César Strassera e Luis Moreno Ocampo no filme 'Argentina, 1985'.
Ricardo Darín (dir.) e Peter Lanzani, que interpretam Julio César Strassera e Luis Moreno Ocampo no filme ‘Argentina, 1985’.

Ele teve que provar que os generais e o ditador orquestraram o genocídio, que estavam cientes dos crimes – torturas e assassinatos – cometidos por militares de patentes mais baixas – e teve que fazer esse levantamento em tempo recorde. Contou, para isso, com a ajuda inestimável de assistentes jovens e inexperientes. Tudo sob ameaças constantes de fascistas ainda inconformados em ter perdido o poder.

O filme conta essa história de forma bastante didática, inclusive para quem não conhece tão a fundo os detalhes da ditadura sangrenta na Argentina. Mostra o trabalho de formiguinha para levantar centenas de testemunhos, o trabalho ao longo do julgamento e a peça final de acusação – brilhante.

Mostra ainda como a sociedade argentina, que estava devidamente polarizada, como a nossa hoje, se engajou no que estava acontecendo, como a imprensa cobriu tudo de perto, como até mesmo alguns militaristas fanáticos ficaram abismados com a gravidade dos crimes contra a humanidade cometidos.

Cena do filme 'Argentina, 1985', sobre julgamento dos militares pelos crimes cometidos durante a ditadura.
Cena do filme ‘Argentina, 1985’, sobre julgamento dos militares pelos crimes cometidos durante a ditadura.

Paralelos com as barbáries brasileiras

Naquela época, assim como hoje – tantas décadas depois – o discurso dos fascistas para justificarem seus atos sádicos e perversos era o alardeio de um “perigo comunista”. Não é chocante que o mesmo discurso esteja sendo usado por radicais bolsonaristas para pedirem a volta de uma ditadura militar no Brasil?

Por aqui, segundo a Comissão da Verdade, 434 pessoas foram mortas pela ditadura militar, as quais 210 estão até hoje desaparecidas. Mais de 20 mil brasileiros foram torturados.

Mas apenas 10 militares foram julgados e condenados por seus crimes aqui no Brasil, até hoje. O Ministério Público Federal entrou com 53 ações pedindo punição a outros agentes, ao longo de dez anos. Nenhuma delas resultou em punição.

Enquanto isso, na vizinha Argentina, mais de 1.000 pessoas já foram julgadas e condenadas pelos crimes bárbaros cometidos na ditadura, e alguns dos julgamentos de militares estão acontecendo até bem recentemente.

Por que essa diferença?

Porque, lá, houve um julgamento em tribunal civil que colocou Videla na prisão perpétua e puniu outros generais, poucos meses após o fim dos anos de chumbo. Já aqui, a Lei da Anistia foi interpretada de um jeito equivocado, impedindo a reparação histórica pelos crimes cometidos pelos nossos milicos.

Disso resulta que a sociedade brasileira nunca viu nenhum militar sendo punido pelas sessões de tortura e pelas mortes. E a impunidade choca ovos de serpente.

O primeiro ovo foi chocado em 2016, quando o então deputado federal Jair Bolsonaro fez um discurso na Câmara dos Deputados exaltando o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos maiores torturadores da história do Brasil. Bolsonaro não foi preso nem cassado, saiu até mais forte da louvação a um torturador.

O segundo ovo foi chocado em 2018, quando este mesmo Bolsonaro foi (democraticamente) eleito presidente da República. Exerceu um mandato, por quatro anos, de retrocessos, corrupção, crimes ambientais, genocídio durante a pandemia da Covid-19 e, claro, cercado por militares.

O mais recente ovo foi chocado nas cenas de terrorismo e tentativa de golpe a que assistimos nos últimos três meses, especialmente no dia 8 de janeiro.

Charge de Machado sobre atos terroristas e golpistas em Brasília, em 8/1/2023.
Charge de Machado.

Precisamos urgentemente, no Brasil, de um resgate à nossa memória. Os brasileiros não se lembram nem do descaso com as mortes por Covid-19, ocorrido há tão pouco tempo, como esperar que se lembrem das torturas, perseguições, mortes e censura de um período já distante da História?

Filmes resgatam memórias históricas

“Argentina, 1985” cumpre este precioso papel para nossos vizinhos. Ali vemos, sem poupar detalhes, como eram feitas as torturas contra mulheres grávidas, bebês recém-nascidos, adolescentes de 16 anos. Como eram sádicos os torturadores. Como eram abjetos os generais que os comandavam.

Filmes são importante documento histórico. Assim como os europeus já fizeram tantos filmes para relembrar os horrores do Holocausto durante o nazifascismo, precisamos fazer o mesmo: relembrar os horrores que vivemos aqui, com os nossos fascistas, que sabem ser tão cruéis quanto Hitler e Mussolini.

Se não relembrarmos, corremos o risco de ver a História se repetir. Agora com uma mãozinha poderosa das estratégias de lavagem cerebral com fake news, usadas à exaustão por Donald Trump, Steve Bannon, Bolsonaro e sua trupe, nas redes sociais e aplicativos de mensagens.

A História precisa ser conhecida.

Tirei dois pontos da minha nota ao filme porque acho que a edição final poderia ter sido mais ágil. Se tivesse seguido a cartilha de “Os 7 de Chicago“, por exemplo, que também é um filme de júri, provavelmente levaria a mesma nota 10.

Mas, no fundo, isso não importa. “Argentina, 1985” carrega uma mensagem que, por mais dolorosa que seja, deve ser divulgada aos quatro ventos. Que nos inspire, aqui no Brasil, para também resgatarmos nossas memórias e a tão necessária reparação histórica de um regime ditatorial.

Como diria Julio César Strassera: “Nunca mais!

 

‘Argentina, 1985’ foi indicado a 1 Oscar em 2023 (não venceu):

  1. Melhor filme estrangeiro

Assista ao trailer do filme ‘Argentina, 1985’: 

-> Leia também a análise de Sylvia Colombo sobre o filme.

 

Outros filmes que resgatam importantes memórias:

Leia também:

 

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Por Cristina Moreno de Castro (kikacastro)

Mineira de Beagá, jornalista (passagem por Folha de S.Paulo, g1 e TV Globo, UOL, O Tempo etc), blogueira há 20 anos, amante dos livros, poeta, cinéfila, blueseira, atleticana, politizada, otimista, aprendendo desde 2015 a ser a melhor mãe do mundo para o Luiz. Antirracista e antifascista.

2 comentários

  1. Cris, sabe a causa mortis do bravo promotor civil argentino que conseguiu a condenação dos torturadores militares? Essas mortes de quem acusa, seja na Justiça ou na imprensa, os crimes das ditaduras, seja nas Espanha, em Portugal ou no Brasil, podem ser causadas pela violência ou pelo estresse, como aconteceu com Stanislaw Ponte Preta ou, mais recentemente, com Paulo Henrique Amorim, um crítico do governo que admirava o torturador Carlos Brilhante Ustra, críticos cujos corações não resistiram ao desforço, podem desencorajar novas denúncias e, sobretudo, apresentações de provas. Quero assistir a esse filme!

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    1. Pelo que diz esta matéria da AFP publicada em 2015, no dia em que ele morreu, a causa da morte foi doença respiratória: https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2015/02/27/interna_internacional,622416/morreu-promotor-do-historico-julgamento-dos-chefes-da-ditadura-argentina.shtml. O filme mostra mesmo que ele fumava como um louco, um cigarro atrás do outro. Filmaço histórico, vale a pena assistir!

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