‘Argentina, 1985’: o discurso de Julio Strassera na íntegra – Nunca mais!

Cena do juicio a las Juntas Militares de 1985, com o oito réus sendo julgados por um tribunal civil pelos crimes atrozes cometidos na ditadura argentina.
Cena do juicio a las Juntas Militares de 1985, com o oito réus sendo julgados por um tribunal civil pelos crimes atrozes cometidos na ditadura argentina.

Diante de todos os réus – oito generalões da ditadura, sendo julgados de forma inédita por um tribunal civil – e diante de todo o povo argentino, que acompanhava pelas transmissões em rádio, o promotor Julio César Strassera, protagonista do filme “Argentina, 1985“, leu sua peça de acusação final, com pedido de condenação aos militares pelos crimes que cometeram.

Segundo o filme, sobre o qual escrevi ontem, Strassera contou com a ajuda de várias pessoas para escrever este emocionante discurso (até mesmo de seu filho, que tinha 14 anos, mas que hoje conta que não chegou a contribuir mais que emprestando os ouvidos).

Ao final, foi tão contundente em suas palavras que o tribunal veio abaixo com tantos aplausos:

Transcrevo a seguir os nove minutos do discurso que foram levado para o filme, que são apenas parte minúscula, obviamente, de uma argumentação muito mais ampla e cheia de fundamentos jurídicos, e com todo o detalhamento das penas pedidas, que não caberiam em um filme. Quem tiver interesse pode ler todas 19 páginas do texto original, em espanhol.

O trecho abaixo, no entanto, é bastante fiel ao original. Transcrevi com base na tradução legendada para o português na Prime Video. Os grifos em negrito são meus.

Que todos possam ler e reler este belo discurso, que encontra ressonância ainda nos dias de hoje, para nos lembrarmos de que a barbárie, o sadismo e a violência extrema do fascismo não são solução nem na Argentina, nem no Brasil, nem em nenhum lugar do mundo, em nenhuma época.

Julio Strassera e Luis Moreno Ocampo durante o juicio a las Juntas Militares de 1985.
Julio Strassera e Luis Moreno Ocampo durante o juicio a las Juntas Militares de 1985.

Mas vamos às palavras de Strassera:

“Senhores juízes,

A comunidade argentina e a também a consciência jurídica universal, confiaram a mim a digna missão de me apresentar diante deste tribunal para exigir justiça.

Razões técnicas e fáticas, como a ausência de um delito penal específico no direito nacional que descreva em definitivo o tipo de crime em julgamento hoje e a impossibilidade de considerar os milhares de casos um a um, me levaram a expor, em 17 dramáticas semanas de audiências, apenas 709 casos, que, de certo, não esgotam, o número assustador de vítimas causadas pelo que podemos descrever como o maior genocídio da jovem história do nosso país.

A violência imperava no país, quando três dos réus decidiram, mais uma vez,
em nome das Forças Armadas, tomar o governo à força, desprezando o desejo do povo.

E qual foi a resposta do Estado, após este golpe, à guerrilha subversiva? Para descrevê-la, senhores juízes, me bastam três palavras. Feroz, clandestina e covarde.

As guerrilhas sequestraram e mataram. E o que o Estado fez para combatê-las? Sequestrou, torturou e matou em uma escala infinitamente maior. E, o que é pior, à margem de qualquer sistema jurídico.

E disso derivaram, senhores juízes, consequências muito mais graves.

Quantas vítimas da repressão eram culpadas de atividades ilegais? Quantas eram inocentes? Nunca saberemos, e não por culpa das vítimas.

A eliminação do processo judicial causou uma verdadeira subversão jurídica. Denúncias foram substituídas por acusações. Interrogatórios, por tortura. E a sentença foi embasada no gesto neroniano do dedão para baixo.

Dentre as muitas dívidas que este sistema covarde contraiu com a sociedade argentina, existe uma que não pode mais ser saldada.

Gostaria de dizê-la. A falta de sentença judicial não é a omissão de uma formalidade. É uma questão vital de respeito à dignidade da humanidade. Seu abandono provocou o seguinte.

Uma pessoa foi sequestrada por fazer parte da FAP. Forças Armadas Peronistas. Mas ela fazia parte da FAP, Federação Argentina de Psiquiatras.

Alguém tinha o direito de deixar Adriana Calvo de Laborde dar à luz algemada, vendada, no banco traseiro de uma viatura, deitada no chão, sem poder abraçar a filha?

“Não aceitaremos que a morte vague pela Argentina. Vagarosamente, para não notarmos, uma máquina de horror liberou sua imoralidade sobre os desavisados e os inocentes.” Este foi o testemunho do almirante Emilio Eduardo Massera em 2 de novembro de 1976, na Escola de Mecânica da Marinha.

Naquele dia, na sede da Esma, deitada em um tapete, estava Cecilia Inés Cacabelos. Ela tinha 16 anos. Ela estava vendada, algemada e acorrentada. Ela tinha sido capturada graças à informação dada pela irmã, que acreditava que fossem apenas interrogá-la. Ela achou que fosse salvar a vida dela. Cecilia Inés Cacabelos, ainda hoje, está desaparecida.

Mas adotemos agora a teoria da guerra, tão repetida pelos réus.

Podemos considerar o sequestro de indefesos, ao amanhecer, por gangues anônimas, um ato de guerra?

É um ato de guerra torturá-los e matá-los se não ofereceram resistência?

É um ato de guerra ocupar lares e fazer famílias de reféns?

São alvos militares os recém-nascidos?

Este processo significou, para quem teve o privilégio doloroso de vivenciá-lo profundamente, uma espécie de descida às zonas tenebrosas da alma humana, nas quais o sofrimento, a degradação e o terror atingem profundidades difíceis de imaginar antes e de compreender depois.

Dante Alighieri, em “A Divina Comédia”, reservou o sétimo círculo do Inferno para os violentos. Para todos aqueles que feriram outros com o uso da força. E, nesse mesmo Inferno, ele mergulhou em um rio de sangue fervente e repugnante, um tipo específico de condenado, que o poeta descreve assim:

“Estes são os tiranos que viveram de sangue e de rapina. Aqui, eles lamentam suas impiedosas maldades”.

Por tudo isso, Excelência, este julgamento e esta sentença são importantes e necessários para a nação argentina, que foi ofendida por crimes atrozes. A atrocidade deles torna a hipótese de impunidade algo monstruoso.

A menos que o senso moral dos argentinos tenha chegado a níveis tribais, ninguém pode permitir que sequestro, tortura e assassinato se tornem incidentes políticos.

Ou “eventualidades do combate”.

Agora que o povo argentino recuperou o governo e o controle das instituições, assumo a responsabilidade de declarar em nome dele que o sadismo não é uma ideologia política nem uma estratégia bélica, mas uma perversão moral.

Este julgamento e a sentença que proponho buscam estabelecer uma paz baseada não no esquecimento, mas na memória. Não na violência, mas na justiça.

Esta é nossa oportunidade. Talvez seja a última.

Senhores juízes, quero renunciar expressamente a toda pretensão de originalidade para este encerramento. Quero usar uma citação que não pertence a mim, porque já pertence a todo o povo argentino. Senhores juízes: “Nunca mais”.”

Veja o discurso original de Julio César Strassera na íntegra em vídeo:

Como bem disse Strassera: Nunca mais!

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Por Cristina Moreno de Castro (kikacastro)

Mineira de Beagá, jornalista (passagem por Folha de S.Paulo, g1 e TV Globo, UOL, O Tempo etc), blogueira há 20 anos, amante dos livros, poeta, cinéfila, blueseira, atleticana, politizada, otimista, aprendendo desde 2015 a ser a melhor mãe do mundo para o Luiz. Antirracista e antifascista.

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