O dia em que quase fui atropelada (e as 6 lições que aprendi)

chupchup

 

Tudo era diferente quando eu era criança.

O transporte escolar não era uma van moderna, com poltronas confortáveis, cinto de segurança e até cadeirinha, no caso de crianças muito pequenas. Era um ônibus grande, do tamanho dos coletivos, com bancos duros e sem cinto, onde as crianças ficavam pulando e correndo e brincando mesmo com o veículo em movimento. O motorista, conhecido como Marreco (não sei se era sobrenome ou apelido), tinha os cabelos cacheados longos e costumava dirigir sem camisa. Sua mulher, acho que Rosângela, vendia chup-chup “sabor vermelho”, que devorávamos diariamente, sem nos preocuparmos com o fato de ficarem soltos num isopor encardido, cheio de gelo derretendo numa aguinha escura. E éramos felizes assim.

A única coisa de que eu não gostava nesse escolar era que ele sempre atrasava. Eu tinha lá meus 6 ou 7 anos de idade e ficava aflita com a perspectiva de perder o começo da aula. Já era uma criança responsável e já não gostava de me atrasar, desde aquela época. Todos os dias, eu ficava lá numa esquina a um quarteirão de casa, para ajudar o Marreco e poupar o tempo dele com voltas desnecessárias, e ele sempre atrasava alguns minutos.

Num desses dias, ele atrasou mais do que o normal. Eu já estava angustiada, porque a aula começaria em instantes, e nada de o Marreco virar a esquina. Quando finalmente vi o ônibus aparecer, saí correndo em direção a ele, atravessando a rua sem olhar se vinha carro. E vinha. O carro (seria demais lembrar de que marca, modelo ou cor) parou a centímetros de mim, numa freada brusca e barulhenta, dessas que fazem as janelas dos prédios próximos se abrirem, com curiosos.

O motorista, lá pelos seus 50 anos, saiu do possante aos berros, xingando a mim ou ao adulto que devia estar me acompanhando à espera do escolar, já não me lembro quem. “BLABLABLABLABLABLA…!” Não capturei nem uma palavra do que o homem disse, tamanho meu estado de choque. Eu estava paralisada. Na verdade, só consegui apreender um dos gritos: “Deus!” Teria dito que só não morri por forças divinas? Ou que graças a deus que o freio do carro funcionou direitinho? Ou que deus tenha misericórdia de minha pressa e afobação? Só sei que ele estava bravíssimo: comigo, com meu acompanhante ou com o Marreco descamisado, não sei ao certo.

Entrei no ônibus aos prantos e passei toda a viagem para a escola chorando, sendo adulada pelos amiguinhos. Acho até que ganhei um chup-chup de graça, como consolo.

Com esse meu trauma de infância, de que recordo quase nitidamente mais de 20 anos depois, aprendi seis lições: que, quando sobrevivemos, temos que ouvir um sermão para compensar; que crianças têm grande temor a/de deus; que o transporte escolar não era tão seguro assim; que a pressa não vale a pena; que um chup-chup e um monte de amigos falando palavras doces são ótimos para acalmar um susto; e, sobretudo, que, mesmo quando estamos errados, o pedestre é sempre a vítima.

escolar

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Por Cristina Moreno de Castro (kikacastro)

Mineira de Beagá, escritora, jornalista (passagem por Folha de S.Paulo, g1, TV Globo, O Tempo etc), blogueira há mais de 20 anos, amante dos livros, cinéfila, blueseira, atleticana, politizada, otimista, aprendendo desde 2015 a ser a melhor mãe do mundo para o Luiz. Autora dos livros A Vaga é Sua (Publifolha, 2010) e (Con)vivências (edição de autor, 2025). Antirracista e antifascista.

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