O fim da Copa do Mundo, a vida em círculos e a crônica de Drummond

Crônica de Carlos Drummond de Andrade sobre derrota do Brasil na Copa do Mundo de 1982.
Crônica de Carlos Drummond de Andrade sobre derrota do Brasil na Copa do Mundo de 1982.

Este dia chegou. Não ia durar para sempre, né? Hoje, por volta das 18h, talvez um pouco mais, a depender de prorrogações e pênaltis (que espero não serem necessários para a vitória alemã), estaremos assistindo à entrega da taça e, vapt-vupt, poderemos decretar que não há mais Copa por uns bons quatro anos.

Eu até queria escrever uma baita crônica sobre os jogos dentro do Brasil, sobre a derrota épica da seleção de Felipão, sobre a hospitalidade dos brasileiros com os estrangeiros, sobre a provocação irritante dos argentinos (um dos motivos que me fez torcer contra eles nesta final), sobre o caos que não houve nos aeroportos, estradas e hotéis, sobre os protestos que também praticamente não existiram etc, mas acho que todo mundo já cansou de ler boas crônicas sobre o assunto — e, confesso, estou meio exaurida neste fim de Copa.

Então resolvi fazer o seguinte. Vou copiar e colar abaixo uma crônica de Dru-dru, o querido Carlos Drummond de Andrade, que saiu estampada na capa do caderno de Esportes do “Jornal do Brasil” em 7 de julho de 1982, depois que a incrível seleção de Telê Santana perdeu nas quartas de final para a Itália, na Copa da Espanha. E, para mostrar como a crônica dele continua atual, vou fazer apenas algumas modificações, quase cirúrgicas mesmo, as quais destacarei em negrito e itálico, para não restar dúvidas de qual parte é a paródia e qual é a crônica original. Ao final do texto, darei o link para quem quiser ler apenas o que o gênio de Itabira realmente escreveu.

Aí vai:

“Perder, Ganhar, Viver

Vi gente chorando na rua, quando o juiz apitou o final do jogo perdido; vi homens e mulheres pisando com ódio os plásticos verde-amarelos que até minutos antes eram sagrados; vi bêbados inconsoláveis que já não sabiam por que não achavam consolo na bebida; vi rapazes e moças festejando a derrota para não deixarem de festejar qualquer coisa, pois seus corações estavam programados para a alegria; vi o técnico incansável e teimoso da Seleção xingado de bandido e queimado vivo sob a aparência de um boneco, enquanto o jogador que errara muitas vezes ao chutar em gol era declarado o último dos traidores da pátria; vi a notícia da suicida do Nepal e dos mortos do coração por motivo do fracasso esportivo; vi a dor dissolvida em uísque escocês da classe média alta e o surdo clamor de desespero dos pequeninos, pela mesma causa; vi o garotão mudar o gênero das palavras, acusando a mina de pé-fria; vi a decepção controlada da presidente, que se preparava, como torcedora número um do país, para viver o seu grande momento de euforia pessoal e nacional, depois de curtir tantas desilusões de governo; vi os candidatos do partido da situação aturdidos por um malogro que lhes roubava um trunfo poderoso para a campanha eleitoral; vi as oposições divididas, unificadas na mesma perplexidade diante da catástrofe que levará talvez o povo a se desencantar de tudo, inclusive das eleições; vi a aflição dos produtores e vendedores de bandeirinhas, flâmulas e símbolos diversos do esperado e exigido título de campeões do mundo pela sexta vez, e já agora destinados à ironia do lixo; vi a tristeza dos varredores da limpeza pública e dos faxineiros de edifícios, removendo os destroços da esperança; vi tanta coisa, senti tanta coisa nas almas…

Chego à conclusão de que a derrota, para a qual nunca estamos preparados, de tanto não a desejarmos nem a admitirmos previamente, é afinal instrumento de renovação da vida. Tanto quanto a vitória estabelece o jogo dialético que constitui o próprio modo de estar no mundo. Se uma sucessão de derrotas é arrasadora, também a sucessão constante de vitórias traz consigo o germe de apodrecimento das vontades, a languidez dos estados pós-voluptuosos, que inutiliza o indivíduo e a comunidade atuantes. Perder implica remoção de detritos: começar de novo.

Certamente, fizemos tudo para ganhar esta caprichosa Copa do Mundo. Mas será suficiente fazer tudo, e exigir da sorte um resultado infalível? Não é mais sensato atribuir ao acaso, ao imponderável, até mesmo ao absurdo, um poder de transformação das coisas, capaz de anular os cálculos mais científicos? Se a Seleção jogasse dentro do Brasil, apenas para pegar o caneco, como propriedade exclusiva e inalienável do país, que mérito haveria nisso? Na realidade, nós jogamos aqui pelo gosto do incerto, do difícil, da fantasia e do risco, e não para recolher um objeto roubado. A verdade é que não estamos de mãos vazias porque não ganhamos a taça. Ganhamos alguma coisa boa e palpável, conquista da necessidade de renovação. Suplantamos quatro seleções igualmente ambiciosas e perdemos para a quinta. A Alemanha não tinha obrigação de perder para o nosso time, nas condições em que ele está. [Frase cortada] Paciência, não vamos transformar em desastre nacional o que foi apenas uma experiência, como tantas outras, da volubilidade das coisas.

Perdendo, após o emocionalismo das lágrimas, readquirimos ou adquirimos, na maioria das cabeças, o senso da moderação, do real contraditório, mas rico de possibilidades, a verdadeira dimensão da vida. Não somos invencíveis. Também não somos uns pobres diabos que jamais atingirão a grandeza, este valor tão relativo, com tendência a evaporar-se. Eu gostaria de passar a mão na cabeça de Felipão e de seus jogadores, reservas e reservas de reservas, como São Victor, o craque não utilizado, e dizer-lhes, com esse gesto, o que em palavras seria enfático e meio bobo. Mas o gesto vale por tudo, e bem o compreendemos em sua doçura solidária. Ora, o Felipão! Ora, os atletas! Ora, a sorte! A Copa do Mundo de 2014 acabou para nós, mas o mundo não acabou. Nem o Brasil, com suas dores e bens. E há um lindo sol lá fora, o sol de nós todos.

E agora, amigos torcedores, que tal a gente começar a trabalhar, que o ano já está na segunda metade?”

E é isso 😉 Vejam como quase não tive que mudar nada no texto. Adaptei uma coisa aqui, outra ali, mudei o trecho que dizia ser apenas uma questão de sorte — já que faltou mesmo foi talento para nossa atual Seleção e seu comandante –, e nem mesmo a parte das eleições, dos governistas versus oposicionistas precisou ser retocada. Até suicídio teve, vai entender! A impressão que tenho é que a vida anda em círculos, em ciclos finitos, que sempre se repetem, que permitem que um texto escrito em 1982 continue válido 32 anos depois. Com a diferença que, neste momento, estamos na entressafra de jogadores (quem nos dera ter Toninho Cerezo, Falcão, Luisinho, Sócrates e Zico na seleção atual) e de escritores (que falta faz um Drummond nos jornais do país!). E aí temos que nos virar com Fred, Júlio César e uma tal de Cristina, que só serve para parodiar 😀

Dito isto, LEIA A CRÔNICA ORIGINAL do Dru-dru.

Crônica de Carlos Drummond de Andrade sobre derrota do Brasil na Copa do Mundo de 1982.
Crônica de Drummond sobre derrota do Brasil na Copa do Mundo de 1982.

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Por Cristina Moreno de Castro (kikacastro)

Mineira de Beagá, escritora, jornalista (passagem por Folha de S.Paulo, g1, TV Globo, O Tempo etc), blogueira há mais de 20 anos, amante dos livros, cinéfila, blueseira, atleticana, politizada, otimista, aprendendo desde 2015 a ser a melhor mãe do mundo para o Luiz. Autora dos livros A Vaga é Sua (Publifolha, 2010) e (Con)vivências (edição de autor, 2025). Antirracista e antifascista.

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