‘Duas fotografias’, um conto de Pedro Ângelo

Filme negativo de fotografia analógica, segurado por duas mãos, em tom de sépia, remetendo ao passado, a lembranças antigas, memórias.
Foto: Barna Kovács / Unsplash

Hoje trago aqui um conto lindo escrito pelo Pedro Ângelo, com quem trabalhei brevemente na minha primeira passagem pelo g1.

Nascido no Rio de Janeiro, em 1990, atualmente Pedro Ângelo vive em Belo Horizonte. É professor de Ashtanga Yoga e trabalha na escrita do seu primeiro romance. Formado em jornalismo, trabalhou por cerca de dez anos como repórter do portal g1.

O conto “Duas fotografiasficou entre os finalistas do Prêmio OFF Flip de 2023 e foi publicado em coletânea junto com outros trabalhos selecionados.

Apreciem a seguir.


Duas fotografias

Pedro Ângelo

Fotografia #1: Sala de Recepção do Hotel. “Eu” e “Paloma”. Itatiaia. “Eu” se refere à minha mãe e “Paloma”, por incrível que pareça, a uma cachorrinha vira-lata prenha. A gravidez da cadela é bem aparente, com uma barriga grande e as mamas protuberantes. Não posso dizer o mesmo de minha mãe. Fina, magrinha, esbelta, corada. O que posso afirmar, no entanto, é que dentro de pouco tempo ela também estaria grávida. Como ela mesmo me disse, aquela viagem pra Itatiaia era a sua lua de mel. O sorriso dela era sincero. Certamente, meu pai não precisou fazer nenhuma daquelas brincadeiras bobas que as pessoas costumam fazer antes das fotos (“diga xis”, “olha o passarinho” e por aí vai). A felicidade era evidente no rosto dela. A foto está na vertical. Portanto é possível ver todo o seu corpo e alguns detalhes à sua volta. Do seu lado esquerdo, está “Paloma”, a cachorra, a quem minha mãe abraça com muito amor. Do seu lado direto, está uma almofada branca com um coração e umas florzinhas bordadas. Ao fundo, podemos ver, através de uma janela, que era um fim de tarde. Minha mãe usava uma faixa no cabelo, duas pulseiras e um colar bem delicado, aparentemente de ouro. A pata direita dianteira de Paloma está sobre a perna esquerda de minha mãe.

Fotografia #2: Estou só, diante de uma mesa de aniversário extremamente decorada. Há tudo que um menino de seis anos possa desejar: docinhos, balas, enfeites e um grande bolo retangular ornamentado com marshmallow. Acima da minha cabeça há uma espécie de painel com dezenas de balões amarrados com barbante. Levando em consideração a minha solidão e o aspecto bem arrumado da mesa, arrisco em dizer que a fotografia tenha sido feita antes da chegada dos convidados. Minha mãe tinha essa mania. Ela gostava de conservar o estado original das coisas. E não se podia correr o risco de algum moleque atrevido chegar e roubar um dos brigadeiros ou atrapalhar um enfeite. Tudo deveria estar impecável. Minha mãe não imaginava, porém, a desolação em que eu estaria mergulhado no momento do disparo. A minha tristeza era evidente e não havia nada que pudesse ter sido feito diante daquilo. Naquele dia 27 de abril, eu fazia seis anos e a morte do meu pai havia completado, precisamente, um ano, um mês e um dia. Não havia nenhum sinal de sorriso no meu rosto. O meu queixo estava enrugado e minhas bochechas, levemente avermelhadas. Pode-se dizer que eu chorava sem derramar lágrimas ou fazer careta. Era um choro implícito.

***

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Por Cristina Moreno de Castro (kikacastro)

Mineira de Beagá, escritora, jornalista (passagem por Folha de S.Paulo, g1, TV Globo, O Tempo etc), blogueira há mais de 20 anos, amante dos livros, cinéfila, blueseira, atleticana, politizada, otimista, aprendendo desde 2015 a ser a melhor mãe do mundo para o Luiz. Autora dos livros A Vaga é Sua (Publifolha, 2010) e (Con)vivências (edição de autor, 2025). Antirracista e antifascista.

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