Foi só agora, aos 40 anos de idade, que fui ler o maior clássico da literatura brasileira: “Dom Casmurro“, de Machado de Assis. Numa enquete informal com meus amigos, vi que estava entre a minoria: 83% disseram que já leram esta obra, contra 17% que ainda não leram, mas querem ler.
Não sei por que demorei tanto a ler a história de Bentinho e Capitu, só sei que ela foi ficando encostada, sendo adiada, e foi só agora, quando ganhei um velho exemplar num sábado com doações de livros feitas pela melhor biblioteca de BH, é que me animei a ler.
A verdade é que, nesses anos todos, eu não passei incólume por Dom Casmurro. Li vários trechos ou capítulos nos vários livros didáticos dos anos de escola, tive acesso a várias referências sobre essa obra, de toda ordem. Mas ler é sempre diferente de conhecer pedaços picados que não dizem muita coisa.

Por exemplo, passei a vida inteira achando que o livro girava em torno de Bentinho tendo dúvida se havia sido traído ou não por Capitu. Achando que todas as 174 páginas do livro eram sobre isso.
Fui surpreendida com uma história de amor bem maior, remontando à adolescência dos dois, ao sofrimento com a promessa materna de que Bentinho seria padre, à separação por conta do seminário, às tramas para que ele pudesse se livrar dessa obrigação eclesiástica, aos primeiros anos de casamento etc. (Isso sem falar na História do Brasil que encontramos dentro de “Dom Casmurro”, com escravos ainda trabalhando para os aristocratas, o imperador ainda em seu posto, um Rio de Janeiro se modernizando.)
Na verdade, foi só a partir da página 152 – ou seja, mais ou menos nas 20 páginas finais do livro, que surgiu mais concretamente esse mote do adultério e os ciúmes decorrentes dele.
Claro, outros momentos do livro, bem anteriores, já demonstravam que Bentinho era um sujeito ciumento. Como, por exemplo, este:

Mas a história do suposto adultério ainda demoraria muitos e muitos capítulos a aparecer.
Trechos do livro Dom Casmurro, de Machado de Assis
Outra citação que eu dava um significado bem diverso do real é aquela dos “olhos de ressaca” de Capitu. De cigana oblíqua e dissimulada também – são três qualificações que o narrador em primeira pessoa insiste em fazer, em vários momentos. Mas, antes de ler “Dom Casmurro”, eu pensava em olhos de ressaca de quem encheu a cara de bebida alcoólica. Ficava até imaginando o que seria esse tipo de olho: cansado? Cheio de olheiras? Sensível à luz?
Mas, não: os olhos de ressaca de Capitu eram daquela ressaca marítima, quando o nível do mar sobe rapidamente, as ondas ficam maiores e as águas, mais agitadas. Vejam o trecho em que o narrador explica sua definição:

Ou seja, era um olhar penetrante, intenso, que parecia arrastar o namorado para dentro de uma perdição. Nenhuma dor de cabeça envolvida, me parece 😉
Pelos trechos que eu já trouxe ao post, dá para notar que o estilo da linguagem de Machado de Assis, por meio do seu narrador em primeira pessoa Bentinho, é bem peculiar. Isso foi outra coisa que só pude conhecer depois de ler com calma este “Dom Casmurro”. Me lembrou “Memórias Póstumas de Brás Cubas” – o único romance de Machado de Assis que eu já tinha lido até então –, com um narrador que conversa conosco o tempo todo, divaga, faz graça, inventa a ordem dos fatos.
No caso de “Dom Casmurro”, ele gosta de interromper a história a todo momento, inventando nomes de capítulos, às vezes com poucas linhas entre um e outro. Não à toa, minha edição, com 174 páginas, tinha nada menos que 148 capítulos.

Além de conversar com o leitor (ou a leitora) a toda hora, o narrador também gosta de falar sobre o ato de escrever, sobre as escolhas que faz em seu texto, numa metalinguagem constante. Por exemplo, neste trecho, em que ele diz que “há conceitos que se devem incutir na alma do leitor, à força de repetição”:

Outro recurso comum em “Dom Casmurro” é o uso de objetos inanimados interferindo no pensamento do narrador. Como vermes, assentos ou um velho coqueiro:

A história se passa assim, às vezes pulando vários anos, às vezes se concentrando tão detalhadamente em minúcias, que ainda rendem divagações extras, que nos fazem entrar na cabeça e na alma do personagem. Como neste trecho, em que ele descreve seu olhar para o chão, o pé da cadeira lascado e duas moscas que passavam por ali, enquanto Capitu se perdia nos próprios pensamentos. Esse nível de descrição ultradetalhada é comum na narrativa de Bentinho:

Afinal, Capitu traiu Bentinho?
Muitas já foram as dissertações, teses, debates e artigos, acadêmicos ou não, escritos sobre esse encerramento da história de Bentinho e Capitu. Além de “Dom Casmurro” ser o maior clássico da literatura brasileira, é provável que esta seja a maior polêmica da literatura brasileira também.
Uma amiga disse que leu “Dom Casmurro” três vezes, em fases diferentes da vida, e a conclusão que teve a respeito da polêmica do livro foi diferente em todas elas.
Ou seja, como em tudo no universo das artes, não temos resposta certa ou errada: temos uma interpretação, que muitas vezes muda de acordo com o nosso olhar, que também vai mudando ao longo da nossa vida.
O que me deixou impressionada, nesta primeira leitura que fiz da obra, foi constatar que passei a vida toda achando que “Dom Casmurro” se tratava da dúvida de Bentinho sobre essa traição e chegar agora, ao cabo do livro, percebendo que ele nunca teve essa dúvida.
Na verdade, Bentinho faz uma narrativa minuciosa e muito franca de tudo, como dá para ver pelos trechos que separei. E, nas ocasiões em que ele sente ciúmes de Capitu, ao longo do livro, ele sempre explica o que move esses ciúmes, objetivamente, e normalmente estanca o sentimento rapidamente. Já chegando ao fim do livro, naquela página que citei neste post, ele faz uma descoberta que lhe dá a certeza de ter sido traído. Hora nenhuma ele duvida da traição, e nessas páginas finais tenta achar um jeito de lidar com o sentimento avassalador que ele conhece, movido pela certeza de que foi chifrado por seu grande amor.
O que coloca essa polêmica matrimonial na berlinda é o fato de que só conhecemos a história pelo ponto de vista de Bentinho, nunca de Capitu. Se ela já foi naturalmente silenciada apenas por ser mulher, numa sociedade patriarcal de meados do século 19, foi também silenciada, uma segunda vez, por não ter tido nenhuma voz além da de Bentinho. Tudo o que conhecemos de Capitu vem dos pensamentos, olhares, paixões e achismos dele.
Se Machado de Assis levantou esta lebre lá em 1900, quando a obra foi publicada, não é de estranhar que tenha sido chamado de gênio: estava muito à frente de seu tempo.
Respondendo tardiamente à pergunta mais velha da nossa literatura tupiniquim: conhecendo apenas a narrativa de Bentinho, entendo que Capitu traiu, sim, o marido. Mas, como boa jornalista, sinto falta de ter acesso ao “outro lado” da história. E, principalmente, de ver os registros históricos (fotos, por exemplo) que me mostrem se o filho do casal era mesmo idêntico ao amigo, ou se isso não passava de paranoia de um sujeito ciumento e casmurro.
***
P.S. A obra que li é uma edição de 1981, inclusive com a grafia antiga da língua portuguesa. Abaixo, coloco o link para uma edição atualizada, de 2019.
“Dom Casmurro”
Machado de Assis
Ed. Principis
208 páginas
R$ 17,77 na Amazon (preço consultado na data do post; sujeito a alterações)
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Excelente abordagem de um clásssico. Uma sugestão: reunir todas as suas resenhas de livros num livro?
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Ahhh não sei não… Nem os livros de crônicas acabei de vender ainda… E quase ninguém que comprou me disse o que achou do livro. Esse trem de ser escritora é meio desanimador.
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Pois é. Não me esqueço que Carlos Drummond de Andrade se frustrou ao tentar vender um livro que mandou fazer com suas poesias. E ele já era bem conhecido…
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Relendo “O caçador de estrelas e outras histórias”, uma coleção de minhas reportagens publicadas no Jornal do Brasil e n’O Globo, encontrei uma de junho de 1975 intitulada “Machado para português ler”. Em entrevista, o professor Fábio Lucas se disse espantado com a ausência em Portugal, onde estava fazendo pesquisas, do interesse dos estudiosos do país pela obra de Machado de Assis. É espantoso, disse, “quando se sabe que, com Eça de Queirós, ele ocupava a primeira posição na narrativa em língua portuguesa no final do século XIX. O Brasil jamais desconsiderou a importância da obra de Eça”, criticou. Será piada de português?
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Esse seu livro é ótimo! Acho que temos que publicar ele também 🙂
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