A Fábrica, de Hiroko Oyamada: leia minha resenha do livro

Ilustração na capa do livro 'A Fábrica', de Hiroko Oyamada (ed. Todavia), é do artista paulistano Zansky (zansky.com.br/portfolio/a-fabrica).
Ilustração na capa do livro 'A Fábrica', de Hiroko Oyamada (ed. Todavia), é do artista paulistano Zansky (zansky.com.br/portfolio/a-fabrica).

Daqui a exatamente uma semana, teremos mais uma reunião do clube do livro da melhor biblioteca de BH, sobre o qual já falei aqui no blog em outras ocasiões. E a obra que vamos discutir, neste mês, é este “A Fábrica“, da japonesa Hiroko Oyamada.

Vai ser minha quarta participação nesse clube de leitura e já deu para perceber que o bibliotecário Rafael Mussolini, que conduz os encontros, tem dado preferência para livros de certa forma polêmicos, que alguns amam e outros detestam, mas que certamente geram incômodo, fazem pensar. O que faz sentido, porque estimula nossa vontade de debater a obra durante a reunião (afinal, que graça teria se todos lêssemos uma obra unânime?). Foi o que aconteceu com “Dentes“, “Coelho Maldito“, “As Chaminés Tocam o Céu” e, agora, “A Fábrica”.

Enquanto li “A Fábrica”, pensei várias vezes em Kafka. Conheci sua obra quando li dois de seus contos em um livro da coleção “Para Gostar de Ler”, aos 13 anos. Em 1999, aos 14 anos, li “A Metamorfose”. Depois, em 2007, li “O Processo”, aos 22. Como hoje tenho 40 anos, dá para perceber que já faz bastante tempo que tive contato com o universo kafkiano. No entanto, como costuma acontecer com todos que leem o escritor tcheco, não consigo me esquecer da marca que esses livros deixaram em mim, tanto pelo absurdo contido nas histórias quanto pela forma de narrar.

Principalmente com “O Processo”, fiquei com aquela sensação amarga de assistir a uma pessoa, num mundo real, presa em um labirinto sem saída – e, de novo, absurdo. Como Kafka foi feliz em construir uma metáfora perfeita para tantos absurdos que depois presenciei ao longo da vida! Inclusive processos judiciais em que o condenado era inocente…

Depois de ler “A Fábrica”, descobri que Oyamada havia citado Kafka como uma de suas maiores influências. Bom, ela sem dúvida aprendeu direitinho com o mestre. Tanto pelo absurdo de descrever uma fábrica imensa, sem nome (ou cujo nome é apenas Fábrica), imponente, praticamente infinita, que ninguém sabe o que fabrica, quanto pelas alegorias que cria sobre os absurdos – reais – do universo do trabalho, quanto pela forma de sua narrativa mesmo, que é sufocante, praticamente sem parágrafos, entrecortada por diálogos confusos, cheia de guinadas temporais.

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Os três narradores em primeira pessoa que se alternam são os personagens Yoshiko, seu irmão Ushiyama e o pesquisador Furufue. Cada um deles trabalha em um setor diferente da Fábrica, isolados, sem saber o que os outros fazem e, pior, sem saber o que eles próprios fazem ou como contribuem com o que quer que seja fabricado ali. É desesperador.

Dois trechinhos, com narrativas de personagens diferentes, explicitam isso no livro:

“Para ser sincero, nem sei direito o que vim fazer aqui. Não entendi nada sobre a Fábrica (…). Não penso que um dia entenderei.”

“Se todos forem documentos da Fábrica, o que afinal ela produz, o que faz? Eu achava que sabia bem o que a Fábrica produzia, mas uma vez trabalhando nela acabei me dando conta de que não sei absolutamente nada. Que tipo de Fábrica será essa?”

Como uma pessoa que já passou por tantos empregos, como eu, e que não hesita em mudar de novo quando o massacre ou a infelicidade falam mais alto que a satisfação no trabalho, fico me perguntando o tempo todo como eles se submetem àquela vida, por que não saem, por que não escapam, simplesmente, da opressão – sim, é opressiva – daquela Fábrica. (Ora, mas não é o que acontece também na vida real, com tantas pessoas insistindo por dez, vinte, trinta anos em um mesmo emprego que só lhes faz mal?)

O final do livro, que, obviamente, não vou estragar neste post, ilustra bem a inescapabilidade daquelas vidas. E pode ser uma metáfora sobre como um emprego pode se tornar uma prisão. Aliás, a narrativa inteira, sempre concentrada na rotina de trabalho dessas três pessoas dentro da Fábrica, nos faz pensar: existe vida fora do trabalho? Para muitos de nós, pessoas de carne e osso do lado de cá da ficção surrealista de Oyamada, a resposta ainda é “não”. Isso não é algo, por si só, bastante assustador?

Apesar de curto, com apenas 140 páginas, o texto de Oyamada não poupa detalhes que contribuem para tornar aquele ambiente cada vez mais opressivo-desesperador-incompreensível-absurdo-surreal, enfim, todos os adjetivos que já usei até aqui. A cor predominante da fábrica é CINZA. Os ambientes de trabalho são subterrâneos, ou apertados por divisórias minúsculas. Os colegas têm uma interação banal, superficial. As pessoas comem o tempo todo, e as comidas, e a forma como comem, parecem muitas vezes agressivas, asquerosas. Os móveis são toscos, a rotina dos trabalhos é monótona, degradante, às vezes desumana, de tão automática – maquinal.

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Trechos comentados do livro ‘A Fábrica’

Separei alguns trechos que acho que ilustram bem a ideia geral do que escrevi até agora, seguidos de breves comentários:

“Está escrito nos manuais de atividades de recrutamento que, quando o entrevistador se mostra muito gentil, geralmente é sinal de que a contratação será recusada ou que há algum impedimento. Por exemplo, o teor do anúncio muda de repente de funcionários efetivo para temporário ou algo assim.” Quem nunca? Este trecho, para mim, ilustra as várias vagas de emprego que chegam para nós com determinadas condições, que depois mudam completamente. Comigo isso já aconteceu.

“‘Ao contrário de antigamente, hoje os treinamentos profissionais são todos OJT, on-the-job-training, acho que é assim que se fala. O pessoal aprende à medida que trabalha, e treinamentos individuais na realidade são deixados a critério da área, para ser mais exato de cada funcionários, numa parceria entre veteranos e novatos.'” De novo, quem nunca começou num emprego ou função completamente novo sem receber qualquer tipo de orientação ou treinamento básico sobre o que fazer? Eu já caí numa enrascada dessas uma vez e foi uma situação humilhante, constrangedora, mas, pensando bem, também surreal e absurda.

“Não me parece que alguém esteja conferindo os documentos depois que eu os reviso. Os envelopes com os documentos revisados desaparecem da prateleira onde são deixados. Eles são levados para algum lugar, mas ignoro qual seja ou quem os recebe. Também não sei se estou fazendo corretamente ou não o trabalho de revisão, o que impede qualquer progresso.” Uma alegoria dos vários trabalhos que as pessoas fazem sem saber se estão fazendo direito, porque ninguém confere e não há qualquer tipo de feedback. Isso é desmotivador e improdutivo para todos.

“Como me deram uma cadeira, sempre que posso trabalho sentada. É uma velha cadeira de escritório, de rodinhas, provavelmente fora de uso em algum departamento. O tecido está um pouco rasgado e é possível ver o poliuretano amarelo interno frouxo, escurecido e começando a se esfarelar. Embora a cadeira tenha uma manivela para regular a altura, mesmo erguendo o assento ele logo acaba caindo para a posição mais baixa.” Um dos trechos do livro que mostram como a super Fábrica, em que todos pareciam querer trabalhar e que pareciam idolatrar como a um deus, na verdade era decrépita, malcuidada, desorganizada, caótica. Como várias empresas onde trabalhamos (inclusive aquelas que parecem INCRÍVEIS vendo de fora). Aliás, já tive várias cadeiras desse tipo também, haha!

“Estava chovendo, mas depois de descer ao subsolo o clima não faz diferença. É sempre o mesmo ar artificial e abafado, a mesma umidade e temperatura. (…) Quer chova ou caia uma terrível nevasca, para nós é indiferente.” Os escritórios de muitas empresas são fechados, vedados, sem janelas, com ar condicionado, muitas vezes tirando da gente a noção de ser dia ou noite, de passagem do tempo, de estar chovendo ou fazendo sol. Esta é outra característica desumana e opressiva da sociedade do trabalho.

“Todos mantêm seus crachás pendurados no pescoço, mas os cordões têm diferentes cores. (…) Os dos funcionários sem vínculo formal são de cores vibrantes como vermelho, amarelo ou rosa-choque.” Neste trecho, o personagem descreve como os funcionários são diferenciados pelas cores dos crachás. Muitas empresas fazem isso, e eu já trabalhei em uma delas. Os efetivos tinham crachás azuis, os temporários (sem contrato, em situação totalmente irregular), laranjas. Se fossem só os crachás, tudo bem, mas havia várias situações discriminatórias relacionadas às duas condições.

Este último trecho me faz lembrar outra coisa importante: o livro explicita muito essa diferença de tratamento entre quatro categorias de trabalhadores: temporários, terceirizados, efetivos e diretores. Elas parecem ter valores diferentes, assim como remunerações e condições de trabalho.

Mas isso também me fez pensar que, no mundo do trabalho, somos todos categorizados e catalogados, com nossas matrículas remetendo aos números de série dos inventários de patrimônios, incluindo os móveis. Não somos muito diferentes dos sofás da empresa, como já escrevi algumas vezes.

Enfim, como o Rafael, o bibliotecário que conduz o clube do livro, bem disse uma vez, livros nem sempre são agradáveis de ler. Alguns são feitos para incomodar, cutucar feridas. Como a arte em geral, não é mesmo? “A Fábrica” não foi um livro fácil para mim, principalmente porque o assunto “trabalho” me move bastante, e a forma como a autora conduz a narrativa, realçando os absurdos que vivemos no mundo real por meio do inusitado de sua ficção, trouxe vários momentos de desconforto, para dizer o mínimo.

Mas isso não deixa de ser um mérito da jovem escritora, que acabou premiada por este livro de estreia. Afinal, “O Processo”, de Kafka, também não foi feito para distrair ou entreter. E, no entanto, seu terror segue marcando a humanidade há exatamente cem anos.

 

Capa do livro A Fábrica, de Hiroko Oyamada“A Fábrica”
Hiroko Oyamada
Todavia
140 páginas
R$ 60,90 na Amazon (preço consultado na data do post; sujeito a alterações)

 

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Por Cristina Moreno de Castro (kikacastro)

Mineira de Beagá, escritora, jornalista (passagem por Folha de S.Paulo, g1, TV Globo, O Tempo etc), blogueira há mais de 20 anos, amante dos livros, cinéfila, blueseira, atleticana, politizada, otimista, aprendendo desde 2015 a ser a melhor mãe do mundo para o Luiz. Autora dos livros A Vaga é Sua (Publifolha, 2010) e (Con)vivências (edição de autor, 2025). Antirracista e antifascista.

2 comments

  1. Na verdade, em todo trabalho que começamos a gente aprende trabalhando. As empresas raramente se preocupam em dar um curso, por menor que seja, sobre a atividade que vai exercer num ambiente novo. Minha pior experiência foi num jornal de Minas que não existe mais. Entrei após longa carreira e já aposentado pelo INSS, convidado para chefiar uma editoria em que havia quatro subeditores. Todos se sentiram ofendidos com minha presença, pois qualquer deles se julgava injustamente preterido na promoção. Eu não conhecia o sistema de informática usado pelo jornal. Devia aprender com eles. Me sabotaram. Alguma surpresa?

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