Representatividade de meninas negras vira tema de dissertação sobre Maju Coutinho e Aline Aguiar

Algumas das imagens que ilustram a dissertação de Camila Marques sobre representatividade e criação de identidade entre meninas negras.
Algumas das imagens que ilustram a dissertação de mestrado de Camila Marques sobre representatividade e criação de identidade entre meninas negras.

Conheci a Camila da Conceição Marques em uma entrevista de emprego, na época em que eu estava prestando serviço para um portal de notícias. Ela me falou que tinha acabado de concluir o mestrado em Estudos de Linguagens no Cefet-MG, e fiquei bastante impressionada, sendo um dos motivos para ela ter sido chamada para a etapa final daquele processo seletivo.

Depois pedi que ela me enviasse a dissertação, que eu leria assim que tivesse um tempinho. Eu queria ler principalmente porque ela mergulhou em um assunto que me interessa muito e sempre é tema de posts aqui no blog, que é o racismo, aqui abordado por meio da questão da representatividade das meninas negras.

O título de seu trabalho é o seguinte: “Efeito de representatividade: a formação dos processos de identificação de meninas negras por meio dos efeitos da representatividade na rede social e sua importância”. A dissertação, defendida em fevereiro de 2024, foi aprovada pela banca examinadora, formada por três professoras doutoras: Carla Barbosa Moreira (do Cefet-MG), Mariana Yafet Cestari (também do Cefet-MG) e Marcia Fonseca de Amorim (da Universidade Federal de Lavras).

O texto de Camila já chama a atenção desde os Agradecimentos, quando ela escreveu o seguinte:

“Aproveito para compartilhar o desejo de que a pesquisa brasileira seja cada vez mais reconhecida e valorizada, assim como nossos professores e as escolas públicas de todo o Brasil que tanto resistem ao descaso e, nos últimos anos, à polarização política. Desejo também um futuro em que a nossa história, enquanto pessoas negras, seja construída por nós, por meio das oportunidades.”

A epígrafe que ela escolheu também foi impactante: um poema da escritora e ativista norte-americana Maya Angelou, “Ainda assim eu me levanto“. Lindo demais.

No resumo, ela explica seus objetivos e percepções:

“Em um país racista e desigual com o Brasil, o crescimento de mulheres negras atuando em profissões de destaque e prestígio é a prova de que uma outra realidade é possível, sendo a representatividade uma ferramenta real para (…) a geração de processos de identificação positiva da pessoa negra com a sua negritude. Desenvolvendo a pesquisa, percebemos, por exemplo, que a presença das jornalistas fez com que essas meninas passassem a gostar de seus próprios cabelos, fortalecendo a sua autoestima.”

As jornalistas a que ela se refere são as globais Aline Aguiar e Maju Coutinho, cujos perfis no Instagram foram analisados durante o mestrado.

Maju Coutinho e Aline Aguiar, em fotos publicadas em suas contas no Instagram.
Maju Coutinho e Aline Aguiar, em fotos publicadas em suas contas no Instagram.

A dissertação prossegue com um lindo texto, ainda na Introdução, em que Camila traz o contexto de sua pesquisa, intimamente atrelado a seus anseios pessoais. Segue um trecho:

“Eu, mulher negra, crescida na periferia da Grande Belo Horizonte, desde criança, além de me teletransportar para outro(s) mundo(s), vi na educação o meio de mudar o rumo da minha vida. Passei boa parte da minha juventude sonhando e estudando para estar em uma universidade. Vi como referência a jornalista Glória Maria em um Brasil com poucos negros na TV, como era nos anos 2000. Sua presença na televisão aos domingos foi um norte para que buscasse um outro sentido para a minha vida. Com isso, tornei-me fruto das políticas de cotas raciais por meio do Programa Universidade para Todos (Prouni). Como milhões de brasileiros, fui a primeira pessoa da minha família a ter um diploma de graduação.

Durante o triênio 2015-2018, temas como empoderamento feminino, representatividade e o próprio feminismo negro ganharam força nos espaços de debate. (…)

Inevitavelmente, esse movimento por demandas sociais exerceu enorme influência nos rumos que minha vida acadêmica estava tomando, assim como na jovem mulher que estava me tornando. Eu nunca havia pensado sobre as diferenças acerca mulheres negras e mulheres brancas, mas sabia de histórias envolvendo racismo com as mulheres da minha família, das vezes em que fui tratada de modo diferente de minhas amigas brancas, das situações nas quais a empatia me foi negada ou das várias vezes em que fui ridicularizada durante os anos de faculdade por levar questões relacionadas às mulheres negras para os debates em sala de aula, de tal modo que o meu psicológico foi totalmente afetado. Naquele período, também comecei a seguir grupos no Facebook relacionados à questão da transição capilar. (…)

Diante do acolhimento tido pelos professores e colegas [da pós-graduação], dei-me conta dos abusos sofridos durante os anos anteriores e do quão real é o fato de que pessoas negras são sistematicamente silenciadas em nossa sociedade. (…)

Intrinsecamente, língua e história caminham juntas, promovendo verdadeiras e significativas mudanças na forma em que enxergamos a sociedade e, enquanto pessoas negras, existimos. Embora nossa pesquisa seja fruto de anseios pessoais, acredito que estou contribuindo com uma nova perspectiva para o futuro acerca de como mulheres negras serão enxergadas pela sociedade. Ainda há um longo caminho, mas, aos poucos, estamos traçando uma nova narrativa. Sob o nosso próprio olhar.”

Achei muito potente e emocionante! E era ainda apenas a introdução.

A mestre Camila Marques, em foto publicada no seu LinkedIn.
A mestre Camila Marques, em foto publicada no seu LinkedIn.

Camila não escreve com meias palavras. É muito direta em seu discurso, ao explicar os objetivos de seu trabalho:

“Sabemos que o racismo é presente e persistente em nossa sociedade, sendo a causa do apagamento das pessoas negras no processo histórico da construção da sociedade brasileira e aprofundamento das desigualdades sociais. Todavia, em nenhum momento nos questionamos ou nos movimentamos tanto acerca da presença de negros nos espaços de poder e, consequentemente, na mídia quanto agora. O nosso processo de curadoria, realizado na análise das imagens nos levou a refletir sobre a forma como as redes sociais – e de modo particular, o Instagram – são fundamentais nesse processo de afirmação e de reivindicação da presença de pessoas negras em espaços de destaque.”

Nas páginas seguintes (entre a 25 e a 91), Camila disserta, com propriedade, sobre análise do discurso (arcabouço teórico do mestrado), demonstra a relação entre a linguagem e a construção da identidade das pessoas negras, trata de colonização, do lugar do negro na sociedade, de pertencimento, depois foca nas mulheres negras, em sua autonomia, no feminismo negro, e por fim chega ao objeto de seu estudo, que é a análise da interação entre Aline Aguiar e Maria Júlia Coutinho com as meninas negras, buscando responder à seguinte pergunta: “Qual é a importância da ascensão do protagonismo de mulheres negras atuantes no telejornalismo nacional na construção da identidade de meninas negras?”

É muito legal como Camila recheia seu texto de imagens ilustrativas, mostrando fotos de crianças ao lado da TV, inspiradas pelas duas jornalistas negras, às vezes usando roupas parecidas, mas quase sempre com o mesmo cabelo crespo – agora valorizado pelas pequenas.

“Mapeamos garotas que se reconciliaram ou passaram a gostar de suas características segundo a presença e representatividade exercida por ambas jornalistas”, explica Camila.

Post de Aline Aguiar com criança que se espelhou na jornalista.
Post de Aline Aguiar com criança que se espelhou na jornalista.

Na página 131, a mestre escreve o seguinte:

“Nas últimas imagens (…), analisamos o modo como as meninas se posicionam perto da TV e a frase “O futuro já começou” escrita pela apresentadora [Maju Coutinho] e se vestiram como a mesma. Destacamos o olhar de afeto, a afeição delas pela jornalista por meio do efeito de representatividade e pertencimento amplamente pontuados ao longo desta dissertação. No futuro mencionado por Coutinho, desejamos que meninas negras possam sonhar e ser o que quiserem.”

De novo, é a pesquisadora deixando uma marca parcial – sim, por que não?, parcial mesmo – em seu texto acadêmico, desejando um futuro que faça mais sentido do que este passado cheio de racismo em que ela viveu. Achei lindo.

"O futuro já começou", escreveu Maju Coutinho na legenda do post, que foi pinçado por Camila Marques.
“O futuro já começou”, escreveu Maju Coutinho na legenda do post, que foi pinçado por Camila Marques.

Como ela mesma disse em suas Considerações Finais (página 136), sua experiência (traumática, por causa do racismo) foi fundamental para a construção de sua dissertação, que foi “fruto de buscas por respostas pessoais“:

“À medida que as situações que me geraram trauma na faculdade cresciam, comecei a refletir sobre a questão racial sob o ponto de vista do gênero. Desenvolvendo a dissertação, ao ler sobre Lélia Gonzalez e Neusa Santos Sousa, além de outros relatos, pude perceber que, ao longo da História, mulheres negras recorrentemente foram desumanizadas. Minhas perspectivas pessoais foram determinantes para a realização desta pesquisa.”

Concluo este post com o encerramento da dissertação de Camila, que, mais uma vez, escolhe palavras fortes e poderosas para se expressar:

“Se na minha geração, meninas negras eram submetidas a traumas simplesmente pela cor da pele, como o fato de serem preteridas nas festas juninas simplesmente por serem negras, a representatividade contribui para a reversão de quadros como esse.

Nós, mulheres negras, não aceitamos mais que nossa história seja determinada por outros. Desejamos ser donas de nossas narrativas e decisões. Está claro que não cabe mais um futuro no qual nós não pertençamos. E, ao nosso modo, estamos fazendo isso: seja pela cobrança de maior representatividade em todos os espaços, ou seja pela conquista deles, como tem acontecido no meio acadêmico, ainda que aos poucos. Posicionamo-nos e, a partir desse posicionamento, os impactos e as mudanças se efetivam, ainda que a passos longos.

Sermos o sonho dos nossos ancestrais é uma maneira de honrá-los, assim como nos colocarmos diante dos efeitos do racismo em nossa sociedade. É preciso sempre lembrar que estamos inseridos em uma sociedade na qual o racismo estrutural resiste há séculos. Todavia, é segundo os nossos movimentos que essa estrutura tão difícil, aos poucos, será rompida. Por essa consciente escolha, opto pela esperança e pelos os efeitos já visíveis conforme esses movimentos.”

Obrigada, Camila. Se você opta pela esperança, eu também vou optar. Parabéns por sua linda dissertação. Que ela chegue muito longe, não só na academia, mas em todos os espaços da sociedade onde seus (necessários) pensamentos couberem ❤

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Por Cristina Moreno de Castro (kikacastro)

Mineira de Beagá, escritora, jornalista (passagem por Folha de S.Paulo, g1, TV Globo, O Tempo etc), blogueira há mais de 20 anos, amante dos livros, cinéfila, blueseira, atleticana, politizada, otimista, aprendendo desde 2015 a ser a melhor mãe do mundo para o Luiz. Autora dos livros A Vaga é Sua (Publifolha, 2010) e (Con)vivências (edição de autor, 2025). Antirracista e antifascista.

2 comments

  1. Um post como nos primórdios deste blog, longo e com muita substância. Parabéns, Cris. Li com muito gosto.

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