‘A Rede Antissocial’: um filme de terror real

A rede antissocial: dos memes ao caos, documentário da Netflix
A rede antissocial: dos memes ao caos, documentário da Netflix

Vale ver na Netflix: A Rede Antissocial: dos Memes ao Caos (The Antisocial Network)
2024 | 1h25 de duração | Classificação: 14 anos | nota 9

Em 2021, escrevi sobre o Qanon e como as teorias conspiratórias estavam ganhando adeptos velozmente graças à Internet. Um trecho:

“É a internet, unindo os radicais mundo afora, num culto invisível que está se tornando cada vez mais perigoso, porque está extrapolando a rodinha de conversa da família e indo parar numa invasão no Capitólio, por exemplo.”

O documentário “A Rede Antissocial“, que a Netflix lançou há pouco, conta, detalhadamente, quando e como isso começou.

Mais precisamente, com a criação do primeiro fórum anônimo popular, o 2chan, no Japão. Que, nos Estados Unidos, foi replicado com o 4chan. E, mais tarde, já numa onda bem mais extremista, misógina e nazista, com o 8chan.

O documentário conversa com os caras que estavam por trás dessas ferramentas. Mostra que, no começo, seu intuito era inocente. Era só um bando de adolescentes nerds querendo zoar, criar memes, fazer piadas, falar de games e animes.

Aos poucos, uma ala desse grupo de nerds hackers ficou mais politizada e criou o movimento Anonymous, que mobilizou protestos no mundo todo, engrossou o Ocuppy Wall Street, e invadiu contas de governos, bancos e até do FBI. Um deles acabou na prisão por dez anos.

O anonimato permitido pelos fóruns deu espaço à criatividade, à insolência, ao protesto político, deu vazão e sentido a uma juventude que queria rir de memes e zoar por aí, sem nem precisar sair de casa. Muitos deles, socialmente excluídos, garotos tímidos e antissociais.

Mas o anonimato também tira o senso de responsabilidade das pessoas. E aí começaram a surgir extremistas, gente defendendo abertamente o nazismo, o estupro, o ódio contra mulheres e contra minorias etc. Esses chans, fóruns de anônimos, fortaleceram e uniram grupos que até então não teriam coragem de falar ou fazer as atrocidades que pensavam.

Surgiram os casos, por exemplo, de adolescentes que promoviam massacres em escolas ou outros espaços públicos apenas pra ganhar aplausos lá nos chans. Como escrevi há três anos, esse lado podre da internet uniu radicais mundo afora, num culto invisível e muito perigoso.

O anonimato também permitiu a criação e disseminação de fake news (a chamada desinformação) sem qualquer responsabilização. Teorias conspiratórias malucas, criadas por adolescentes para zoar, passaram a viralizar e mobilizar multidões.

A turma de Donald Trump – Steve Bannon à frente – percebeu o potencial desses fóruns e desses extremistas para disseminar desinformação em uma escala muito maior, organizada, patrocinada, para a ajudarem a alcançar o poder. Foi nesse momento que as fake news explodiram, assim como teorias conspiratórias bizarras, com teor político – capazes até mesmo de mudar resultados de eleições.

Charge de Lane

Por exemplo, teorias inventadas de que os democratas (olha que coincidência!) possuem atributos como satanismo ou pedofilia. Hillary Clinton foi uma das mais atingidas por esses ataques anônimos, “sem dono” – e Trump acabou vencendo as eleições. (No Brasil tivemos a “mamadeira de piroca”, o “kit gay” e outras invenções de teor parecido, que levaram à vitória de Bolsonaro contra Fernando Haddad.)

Quando Trump perdeu a reeleição, não se importou em soltar mais uma teoria conspiratória impunemente: de que tinha havido um roubo, ele tinha vencido, e não Biden. Qualquer semelhança com Bolsonaro no Brasil NÃO é mera coincidência. Bolsonaro sempre foi próximo de Trump e recebeu assessoria de seu grupo.

Os dois beberam da mesma fonte no uso da internet para disseminar desinformação e aqui aconteceu a mesmíssima invasão de prédios dos Três Poderes, assim como tinha ocorrido a invasão do Capitólio pouco antes. Por pessoas “comuns”, massa de manobra desses políticos.

O documentário passa por todos esses estágios, e o uso político extremista dos chans é só o último deles, daí porque a primeira menção a Trump só vai acontecer lá pelos 45 minutos de vídeo. Ele foca nos Estados Unidos, não fala nada do Brasil e dos bolsonaristas, mas nem precisa: ao ver a invasão do Capitólio e gente parece estar revendo o 8 de janeiro de 2023.

Charge de Carol Cospe Fogo

Didaticamente, o filme documenta como uma ideia inocente de um bando de nerds criativos degringolou em um verdadeiro caos: em um mundo de fanáticos que acreditaram em coisas inventadas como o Qanon (e também escaladas com a ajuda e patrocínio de Trump).

É um filme de terror. E mais aterrorizante ainda por ser real, e por termos presenciado tudo isso, e ainda estarmos presenciando. Um dos entrevistados diz: os humanos não evoluíram pra ficar 24 horas por dia online. Em outro momento: a grande questão do próximo século será como lidar com essas ferramentas que criamos.

Eu costumava ser otimista, mas, desde a pandemia, e desde que presenciei pessoas inteligentes sendo sugados para essas insanidades, sou completamente pessimista quanto a uma solução para esse caos que se instalou. Ainda mais se oportunistas como Trump e Bolsonaro continuarem impunes para patrocinar essas coisas. Acredito que a popularização da inteligência artificial, sem qualquer regulamentação, vai agravar ainda mais esse caos. Espero não estar mais neste planeta para ver isso.

Assistir a este documentário e refletir sobre tudo o que ele detalha tão bem, e que vivemos nas últimas duas décadas, da internet discada até esta era do ChatGPT, é um pequeno passo, minúsculo mesmo, para combatermos o caos.

Afinal, a grande e maior arma contra a desinformação e a loucura coletiva continua sendo a informação de qualidade. Sempre.

Busque suas fontes com critério. Fuja de fanáticos, de todos os tipos. Esta é a única maneira de nos mantermos sãos em meio a tamanho caos.

***

Assista ao trailer oficial de A Rede Antissocial:

 


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Por Cristina Moreno de Castro (kikacastro)

Mineira de Beagá, jornalista (passagem por Folha de S.Paulo, g1 e TV Globo, UOL, O Tempo etc), blogueira há 20 anos, amante dos livros, poeta, cinéfila, blueseira, atleticana, politizada, otimista, aprendendo desde 2015 a ser a melhor mãe do mundo para o Luiz. Antirracista e antifascista.

2 comentários

  1. Muito bom o artigo, que alerta que nao estamos imunes, ao contrário, fomos atingidos e insistimos não perceber.

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