Estávamos em uma roda de amigos, rememorando os tempos de criança. Alguém lembrou que o mês de maio, na nossa infância de famílias católicas, era sinônimo de coroação a Nossa Senhora nas igrejas.
– Eu sempre quis colocar a coroa, mas nunca pude – disse uma amiga querida. – Para mim só sobrava colocar terço, palma…
– Mas por que você não podia? – quis saber outra.
– Porque eu não era loira – desferiu a amiga, que é negra.
Risos nervosos.
– Pesei o “rolê”, né? – brincou ela.
Hoje ela brinca. É uma jornalista feríssima, uma das mais premiadas do Brasil, bem resolvida, bem-sucedida e reconhecida. Dificilmente ficou traumatizada por ter sido preterida pelas crianças com cara de Barbie nas coroações de maio de muitos anos atrás.
Mas fiquei pensando sobre isso, já em casa: e quando ela era criança, como ela viveu aquela situação? Que tipo de violência sofre uma criança negra, todo santo dia? Que tipo de racismo – que é uma agressão, hoje criminalizada – é jogado em crianças negras desde pequetitas?
Não há trégua para os negros, nem quando crianças? Nem na igreja, no contexto do sagrado, do religioso, quando dizem haver pregação de amor, respeito ao próximo etc? (Como na música do Arnaldo Antunes: “Dizem…“).

Nesta semana, li uma reportagem na “Folha de S.Paulo” – “Abordagem racial adequada contribui para autoestima na primeira infância” – que tratava do “poder de transformação que a educação antirracista pode trazer para o desenvolvimento infantil nos primeiros anos de uma criança”.
“Ouvir xingamentos ou receber maus-tratos por sua cor da pele, característica física, ou outra condição gera um estresse crônico que vai se refletir não só em problemas emocionais. [O racismo] vai impactar sua vida profissional, acadêmica e, inclusive, a parte biológica”, diz uma das entrevistadas da reportagem, que defende a criação de políticas públicas nacionais para primeira infância e o estímulo à equidade racial.
Pensei: quantas crianças, que sofreram o racismo que minha amiga sofreu, não cresceram, por isso, com esses graves problemas em várias esferas da vida?
Outra reportagem publicada no mesmo dia 13 de maio (em que é lembrada a abolição da escravatura no Brasil), esta no “Diário do Comércio”, conta que Belo Horizonte tem mais de 50% da população preta ou parda, mas, de suas cerca de 150 estátuas, NENHUMA representa uma pessoa negra.

As primeiras estátuas de duas mulheres negras – as mineiras Carolina Maria de Jesus e Lélia Gonzalez – serão inauguradas na cidade, se tudo der certo, só no próximo mês, relata minha colega Íris Aguiar na reportagem.
Cadê a representatividade da população negra? Pelo visto, não está nem nas lojas de brinquedos, com todas aquelas bonecas de olhos azuis, nem nas obras de bronze por aí. O racismo está em todo lugar: na igreja, nas escolas infantis e até na claridade das ruas…
Lá se foram 136 anos desde a abolição oficial da escravidão no Brasil. Mas ainda há muitas formas de escravização dos povos negros, até hoje. No mínimo, de exclusão ou humilhação, com as “loirinhas” colocando a coroa na santa, enquanto as garotinhas negras colocam, no máximo, o terço. Ou com as centenas de estátuas homenageando bandeirantes e ditadores, em vez de valorizar nossas artistas e revolucionárias com mais melanina na pele.
Está passando da hora de pensarmos e defendermos – não, exigirmos – equidade racial real neste país. (E agradeço à minha amiga por ter trazido todas essas reflexões, com seu devido peso, àquela inocente roda de conversa.)

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importante o post de hoje. Racismo é problema grave.
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Muito grave mesmo!
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