Jornalista Tábata Poline compartilhou situações de violência vividas por ela, para ajudar na reflexão sobre mais esta faceta (cruel e perversa) do racismo diário
Uma das (poucas) felicidades que tive na temporada em que trabalhei na Globo foi ter conhecido algumas pessoas muito bacanas por lá. Uma delas foi a Tábata Poline, jornalista especialista em direitos humanos, que já atuava como repórter da TV, logo se tornou uma das cabeças à frente do “Rolê nas Gerais”, e depois alçou voo para o “Fantástico” enquanto eu ainda era sua colega.
É uma jornalista gente boa, de sorriso fácil, inteligente, filha de um cinegrafista muito porreta, que é o Saulão, e também é, há pouco mais de um ano, a mãezona, super carinhosa, da pequena Lila.
Sua recente experiência materna, que deveria vir carregada de alegrias, infelizmente também vem atravessada por dores e situações de violência, “todo santo dia, 24 horas por dia“. O motivo é aquele de sempre: RACISMO.
Isso porque Tábata é uma mulher negra e Lila é uma bebezinha branca. O racismo tenta tirar dela, violenta e rotineiramente, “a maior conquista” de sua vida, que é ser mãe de sua filha.
Tábata postou ontem em sua conta no Instagram um depoimento fortíssimo, que ela chamou de “desabafo matinal”, sobre “o fato de ser uma mulher negra mãe de uma criança branca”.
Assisti a tudo, com a garganta apertada (imaginei o inferno que seria ter que explicar que sou a mãe do Luiz toda vez que andasse com ele nas ruas), e no fim perguntei à minha ex-colega se poderia transcrever seus vídeos em forma de texto e reproduzir esse desabafo aqui no blog, para que ele não se perdesse ao fim das 24 horas dos stories da rede social, para que continue alcançando mais pessoas pela internet afora.
Com sua autorização, reproduzo o que ela disse nos vídeos aí embaixo. Na torcida para que essa reflexão que ela propõe faça as pessoas perceberem que podem “estar sendo um canal de reprodução de violências terríveis”.
Ainda há tempo para mudarmos nosso olhar e nossa postura enquanto sociedade.
Com a palavra, Tábata Poline:
“A Lila está com 1 ano, e hoje foi a primeira vez que alguém instintivamente deduziu que eu, andando com ela na rua, num bairro de zona sul aqui do Rio de Janeiro, em que eu moro, sou a mãe dela.
A gente parou na porta de uma escola aqui perto para ela ver as crianças brincando. Aí, uma moça que trabalha na escola falou assim: “Você quer entrar, mãe?” Eu falei: “Não, ela só gosta de ficar vendo as crianças brincando.” E ela: “Se você quiser vir com ela, mãezinha, é só me falar que eu deixo vocês subirem”.
E meu olho encheu d’água. Porque eu já vivi inúmeras situações, aqui neste bairro em que eu moro e em outros lugares em que circulei com a Lila na zona sul, em que as pessoas têm certeza absoluta que eu sou a cuidadora dela, sou a babá dela, e não a mãe.
Um dia eu estava com ela brincando e uma senhora falou: “Meu deus, eu fico boba como ela fica à vontade no seu colo!” Eu perguntei pra ela: “A senhora tem filhos?” Ela: “Tenho”. “E os seus não ficavam à vontade no seu colo? Que estranho!” Quando ela reparou a associação que ela tinha feito, (tentou justificar), e eu falei: “ME DÁ LICENÇA”.
Uma outra situação: eu no aeroporto, com a Lila, na fila preferencial de embarque, e tinha uma moça na nossa frente, branca, loira, que estava grávida, e ela era muito magrinha, com a barriguinha pequenininha, e estava com uma blusa no braço, que estava tampando a barriga. Aí o moço falou: “Preferencial!” – e ela foi. E eu atrás, com a Lila no canguru. Ele falou com ela: “Olha, aqui é preferencial”. Ela falou “eu sei”, e já ia mostrar a barriga, mas ele olhou pra trás, me viu com a Lila, e falou: “Ah, a senhora está com a neném”. Eu imediatamente falei: “Não, o neném dela está na barriga dela, esta é a minha neném”. Ele (em tom de brincadeira) “Ah, ela não deixa de estar com um neném, né”. E não percebeu a violência que ele fez.
Eu estava sozinha com a Lila e pensei: “Se eu arrumar um escândalo aqui e externalizar o ódio que estou sentindo, não tem ninguém pra segurar minha filha pra mim”. Então eu respirei fundo e segui em frente.
Contei pra vocês estas mínimas situações porque as pessoas tiram a legitimidade da dor que a gente sente quando esses atravessamentos atropelam a gente pelo caminho, todo santo dia, 24 horas por dia.
Hoje eu tenho que lidar, entender e tentar combater mais essa perspectiva do racismo, que tenta tirar de mim, de forma violenta, a maior conquista que eu tenho na minha vida , que é ser a mãe da minha filha.
Então, hoje, quando essa moça falou “quer subir com ela, mãezinha?”, meu olho encheu d’água porque outras pessoas não experimentam a violência que é quando esse tipo de situação acontece.
Estou contando situações mínimas – eu recebo depoimentos de mulheres negras que vivem situações muito mais violentas e drásticas e cruéis e traumáticas.
E eu não vou tirar nenhuma conclusão disso. Estou dividindo porque, às vezes, é importante a gente se colocar no lugar do outro e, antes de você seguir com os pré-julgamentos e com as justificativas banais de que “tudo é racismo estrutural”, você tem que pensar que você pode estar sendo um canal de reprodução de violências terríveis.”
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Meus olhos lacrimejaram ao ler esse emocionante depoimento da jornalista Tábata Poline transcrito pela Cris. É o que faz a diferença neste blog.
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Como eu disse agora para a Tábata: ela tem uma voz potente, que pode fazer a diferença pra mudar essa situação. Que o desabafo dela alcance muitas mentes e corações por aí!
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