Reflexões sobre o medo, traumas de infância e empatia

Chica gosta de ficar enroladinha em cima do sofá.
Chica gosta de ficar enroladinha em cima do sofá.

Uma das primeiras coisas que a Chica, nossa cachorrinha, aprendeu foi a dormir no lugar que reservamos para ela. Assim que ouve o comando “Vai pra caminha, Chica!”, ela se dirige, sonolentamente, para seu cantinho.

E ela sempre ficou lá numa boa, dormindo tranquila a noite toda, até abrirmos a porta de vidro que liga a área de serviço à cozinha, de manhãzinha, para ela se juntar a nós.

E assim foi em julho, agosto, setembro, outubro, e na maior parte dos meses de novembro e dezembro mais secos da história. Mas em janeiro o desespero da Chica durante as madrugadas de chuva começou a atrapalhar nossas noites de sono.

(Ou melhor, as minhas noites de sono. Porque o Beto e o Luiz dormem como uma pedra e não ouvem nada, mas eu passei a ter o sono mais leve do mundo desde que virei mãe, há oito anos, e cada mexida do Luiz no bercinho já me fazia levantar para ver se estava tudo bem.)

Quanto mais forte a chuva, e mais acompanhada de raios e trovões, maior o desespero com que a Chica bate na porta de vidro com sua patinha.

No começo eu ficava brava com ela, por estar me acordando no meio da noite só por causa de uma chuvinha. Chamava sua atenção, queria que ela voltasse para a “caminha” e me deixasse dormir. Mas ela sempre retomava as batidas na porta, assim que eu a fechava.

Até que um dia percebi o que ela sentia: medo. Ela estava apavorada com a chuva. Sempre que eu aparecia para “resgatá-la”, me recebia agradecida, dando lambidinhas nas minhas mãos, o coração aos pulos.

Comecei a pensar, tentando entender a comunicação (não tão) muda da Chica.

E lembrei que, quando a adotamos, em julho, ela tinha estimados 6 a 9 meses de idade. Ela tinha sido resgatada por uma ONG na rua, então não sabemos de onde veio ou o que aconteceu com ela, mas sabemos que ela viveu ao menos parte de sua vida nas ruas, entre latas de lixo (que ela revira até hoje, se deixarmos ao alcance) e bueiros.

Fazendo as contas, percebi que ela nasceu no auge do período de chuvas. O que me fez pensar que seu medo pode ser, na verdade, algum trauma de infância.

Será que ela foi arrastada por alguma enchente na rua, ainda recém-nascida? Ou foi abandonada na sarjeta num dia de grande tempestade, que a deixou assustada, triste e com frio, tudo ao mesmo tempo? Ou era simplesmente a chuva um dificultador a mais em sua vidinha de sobrevivente, pela grande umidade, por afogar os restos de comida das lixeiras, pelos sustos dos trovões?

Jamais saberemos, mas podemos deduzir ou imaginar. Alguma experiência ruim desencadeou esse medo nela.

Aliás, é o mesmo medo que ela tem de tomar banho. Ela nunca vai ser aqueles cachorrinhos alegres pulando na piscina para se refrescar, que aparecem em vídeos virais de vez em quando (como este abaixo). Toda vez que vou dar banho nela, noto que está tremendo, coração disparado de novo.

A diferença é que ela não pode ficar sem banho: precisa ser corajosa e enfrentar esse medo toda semana.

Mas o pânico da chuva eu posso tentar amenizar. Por isso, logo que começa a chover, e ela começa as batidinhas de leve na porta pedindo uma proteção, eu corro até lá, antes que as batidas fiquem mais desesperadas – e comecem a incomodar os vizinhos –, e vou logo chamando a Chica para dormir no quarto conosco.

(Quando a chuva passa, ela costuma ir sozinha de volta para o cantinho dela.)

Assim como os humanos, cachorrinhos também têm seus traumas. A vida tem obstáculos e sofrimentos difíceis para todos nós. O que nós podemos fazer para amenizá-los, para tornar as vidas dos nossos queridos mais leves, apesar dos temores naturais?

Para a Chica, posso abrir uma porta de vidro, deixá-la ao lado da minha cama na hora do pavor. Para meu Luiz, sempre fui a mão apertada na hora de dormir, e o carinho na hora de um pesadelo inesperado no meio da noite.

O importante, no fundo, é termos empatia. Nunca sabemos o que se passa na cabeça e no coração dos outros, sejam eles cachorrinhos ou humanos – só podemos deduzir ou imaginar.

Mas vale o esforço.

***

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Por Cristina Moreno de Castro (kikacastro)

Mineira de Beagá, escritora, jornalista (passagem por Folha de S.Paulo, g1, TV Globo, O Tempo etc), blogueira há mais de 20 anos, amante dos livros, cinéfila, blueseira, atleticana, politizada, otimista, aprendendo desde 2015 a ser a melhor mãe do mundo para o Luiz. Autora dos livros A Vaga é Sua (Publifolha, 2010) e (Con)vivências (edição de autor, 2025). Antirracista e antifascista.

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