‘O Sol é Para Todos’: um lado da perversidade do racismo

Ilustração de capa, com um rouxinol preto, de uma das edições brasileiras do livro 'O Sol é Para todos', de Harper Lee.
Ilustração de capa, com um rouxinol preto, de uma das edições brasileiras do livro 'O Sol é Para todos', de Harper Lee.

Neste Dia da Consciência Negra, falo um pouco sobre um dos livros mais impactantes da literatura mundial na luta contra o racismo

Harper Lee conseguiu o prodígio de ser celebrada na literatura mundial graças a um único romance – este “O Sol é Para Todos” (To Kill a Mockingbird), que fui ler agora.

Ela tinha apenas 34 anos quando o livro foi lançado, em 1960, e logo ganhou o Prêmio Pulitzer. Dois anos depois, a obra foi adaptada para o cinema e levou três Oscars, inclusive de melhor roteiro.

Tudo isso graças ao impacto de um texto que, embora funcione como uma “cartilha para jovens” sobre como se portar, como se colocar no lugar dos outros, sobre justiça e direitos iguais para todos, não entedia com um amontoado de sermões.

Não, inclusive porque a história principal, do julgamento de um homem negro injustamente acusado de estupro de uma mulher branca, é mesclada a outras histórias, como as aventuras de Scout, a narradora, seu irmão Jem e o melhor amigo Dill.

Scout tem entre 6 e 9 anos ao longo da história. Ou seja, é uma criança. Muitas vezes parece inacreditável que uma criança tenha tamanho discernimento como a narradora do livro, mas ela também tem a inocência, a pureza e o atrevimento próprios da infância. Seu filtro de criança suaviza a dureza dos assuntos tratados na história, como o racismo (ainda institucionalizado pela segregação do início dos anos 1930) e a injustiça.

O livro tem ainda outro fator que enriquece muito a história, e a humaniza: ele é muito baseado nas memórias reais da autora. Harper Lee realmente viveu em uma cidadezinha do Alabama naquela época. Seu pai era mesmo um advogado e tinha realmente defendido dois homens negros de um crime injusto (como li na Britannica). Talvez ele também tivesse a sabedoria e o temperamento do herói da história, Atticus Finch, pai de Scout, que é quem mais ensina às crianças – e aos leitores dessa obra – conceitos fundamentais de justiça, empatia, humanidade e respeito.

Uma das frases/ensinamentos de Atticus no livro "O Sol é Para Todos".
Uma das frases/ensinamentos de Atticus no livro “O Sol é Para Todos”.

Dill, o amigão de Scout, é baseado em Truman Capote, que também foi grande amigo e vizinho de Harper na infância. Possivelmente muitas das peripécias descritas no livro, que passam pelos métodos de ensino das escolas e as fofocas da vizinhança, tenham acontecido na vida da autora. E esse ingrediente mágico, da memória afetiva e da nostalgia, costuma incrementar algumas das melhores obras que a gente vê na literatura e no cinema.

Além disso, embora muito se fale sobre a questão do racismo, que o livro escancara (lançado na efervescência dos ano 60, ele foi usado como bandeira, por exemplo, para o movimento do dr. Martin Luther King), acho que a obra vai além, ao abordar outros temas tão progressistas e importantes quanto, como a liberdade feminina e o preconceito contra as pessoas com distúrbios psiquiátricos.

Um outro aspecto cruel do racismo

Em alguns momentos eu me senti um pouco incomodada, pensando que uma obra que se tornou símbolo da luta contra o racismo tenha sido escrita por uma mulher branca e tenha como herói um advogado branco. Mas lembrei que, bem, todos podemos levantar bandeiras pelos direitos humanos e civis, e QUE BOM que esta obra tenha sido capaz de tocar em feridas, mexer em vespeiros e emocionar pessoas pelo mundo afora.

Ela retrata, realmente, apenas o ponto de vista de uma família branca que, indiretamente, se vê atingida pelo ódio contra um homem negro – mas este é um ponto de vista verdadeiro e não menos importante sobre a perversidade do racismo.

A escolha do título original (“To kill a mockingbird“, que é sobre matar um pássaro, já traduzido como rouxinol, cotovia ou sabiá), ilustra a poesia como esse tema é tratado no livro. Vejam este trecho:

“Quando nos deu os rifles de ar comprimido, Atticus não quis nos ensinar a atirar. Mas tio Jack nos mostrou os princípios básicos e ensinou que nosso pai não gostava de armas. Um dia, Atticus disse a Jem:

– Preferia que você atirasse em latas no quintal, mas sei que vai atrás de passarinhos. Atire em todos os gaios que quiser, se conseguir acertá-los, mas lembre-se que é pecado matar um rouxinol.

Foi a única vez que ouvi Aticcus dizer que alguma coisa era pecado e comentei com a Srta. Maudie.

– Seu pai tem razão. O rouxinol não faz nada além de cantar para o nosso deleite. Não destrói, não faz ninho nos milharais, ele só canta. Por isso é pecado matar um rouxinol”.

Nos Estados Unidos, era comum que um crime grave, como assassinato ou estupro, fosse punido com a pena de morte. Matar um rouxinol, portanto, faz referência à injustiça (e até pecado) de matar quem nunca fez nada de errado – assim como o homem que Atticus defendia.

Quase seis décadas depois, Harper Lee lançou “Vá, coloque um vigia”, que foi escrito antes de “O Sol é para todos” mas trata-se de uma sequência, com Scout já adulta descobrindo um pai bem mudado.

Ainda não li essa sequência, que foi recebida friamente pela crítica, mas confesso que não sei se gostaria de contaminar minha memória de Atticus com ela. Infelizmente, nem sempre as pessoas mudam para melhor…

O que eu gostaria mesmo é que houvesse mais personagens, fictícios ou reais, como este advogado idealista, para tornar o mundo um lugar mais fácil. E para que os rouxinóis pudessem, finalmente, viver em paz.

 

Capa do livro O Sol é Para Todos, de Harper Lee“O Sol é Para Todos”
Harper Lee
ed. José Olympio
349 páginas
R$ 52,89 na Amazon (preço consultado na data do post; sujeito a alterações)

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Por Cristina Moreno de Castro (kikacastro)

Mineira de Beagá, escritora, jornalista (passagem por Folha de S.Paulo, g1, TV Globo, O Tempo etc), blogueira há mais de 20 anos, amante dos livros, cinéfila, blueseira, atleticana, politizada, otimista, aprendendo desde 2015 a ser a melhor mãe do mundo para o Luiz. Autora dos livros A Vaga é Sua (Publifolha, 2010) e (Con)vivências (edição de autor, 2025). Antirracista e antifascista.

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