Dia desses, vasculhando um armário na casa dos meus pais, encontrei alguns exemplares amarelados do jornal escolar “Ipsis litteris“, que se autodeclarava “O Pasquim do Colégio Santo Antônio”. Era mensal, com tiragem de 1.500 exemplares.
Eu não fazia parte do quadro fixo de redatores do jornal, mas, assim como outros alunos do CSA, colaborava esporadicamente com as edições.
Na de número 13, de dezembro de 2002, com a manchete “Feliz presidente novo!“, encontrei uma crônica minha sobre a primeira vez que Lula foi eleito presidente da República.
Lá estava eu, com meus 17 aninhos de idade, cheia de entusiasmo pela chegada de um governo de esquerda ao Executivo, pelo meu primeiro voto, curtindo a derrota dos serristas no meio da rua. Eu não me lembrava de tudo o que reli agora, mais de 20 anos depois (por exemplo, era bem roqueira, mas não lembrava que eu “detestava” samba – eu hein).
E achei curiosa a semelhança com a festa que vivi em outubro de 2022, até no mesmo lugar (mas todos bem mais traumatizados com o bolsonarismo e a sombra dos golpistas ainda acampados em frente aos quarteis). Pena que naquela época eu não tinha nem celular nem câmera digital (o mundo já foi assim, lembram?) para fazer os registros em imagem, como fiz 20 anos depois:

Resolvi transcrever o texto impresso todo aqui, porque, na falta das imagens e da minha memória, é ele que serve como um registro histórico – de um tempo em que o Lula conseguiu uma proeza inédita, da minha primeira vez exercendo a democracia pelo voto e do tempo em que eu ainda nem era jornalista, mas já tinha sido picada pelo mosquitinho do jornalismo…
Enfim, de bons tempos, em que eu – e toda a minha geração – ainda conservava muita emoção, entusiasmo e, sobretudo, otimismo.
Leia a transcrição (ipsis litteris) a seguir.

Nos bastidores da vitória
“Eu já havia constatado no dia 6 que votar é uma coisa definitivamente muito sem graça. Depois de uns poucos segundos de realização, passamos todo o dia com a sensação de “falta alguma coisa”. O que faltava era os 100% de apuração de votos e isso só seria efetivado muitas horas depois. Aquele dia 27 não foi muito diferente, com exceção de que todos já sabiam o resultado das eleições desde cedo [pelas pesquisas de intenção de voto]. Então só restava combinar com os amigos onde e quando sair para comemorar.
Não que eu seja fanática, mas coloquei uma camisa vermelha das mais bonitas, peguei três bandeiras e fui de carro com minha irmã para a Afonso Pena, onde fica o Comitê do PT-MG. Depois de meia hora tentando achar vaga, juntamo-nos ao palanque, em meio a umas cinco mil (?) pessoas, todas eufóricas e balançando suas bandeiras vermelhas, brancas, do PCdoB, do PT, de Lula, até do derrotado Nilmário. Milagrosamente ou não, encontrei minha amiga Maria Tereza e ficamos junto à galera em festa no meio da avenida.
Quase todos os carros que passaram tinham seus adesivos e bandeiras e seus passageiros mostravam o L com a mão, sorridentes. Mas era fácil identificar os eleitores de Serra: passavam direto, emburrados, uns mais corajosos gritavam “Serraaaaaa” àquela massa vermelha. Ao que era respondido com um “perdeeeeeeeu”, ou outro verbo menos simpático, mas tudo inocente, claro.
(Já repararam como era difícil encontrar adesivos do Serra nos carros? De duas, uma: ou o tucanato estava sem grana até para dar adesivos, ou os serristas estavam com pouca coragem de declarar seu voto nessas eleições).
Em um momento passou um carro cheio de bandeiras do Lula e a passageira da frente balançava a sua, felicíssima – até que um jovem exaltado, que não devia ter obedecido à Lei Seca durante todo o dia, arrancasse o plástico da haste. Fiquei indignada (se fosse com a minha eu saía do carro!), até perceber o objetivo do garoto. Outro carro sem nenhuma bandeira passou e ele colocou a que “roubara” na janela da frente. A mulher, confusa, segurou o plástico e, quando viu que era uma bandeira do Lula, agarrou com força e balançou na maior animação. Robin Hood à brasileira…
Cansadas de balançar bandeiras e acenar para motoristas empolgados (e com o ombro direito um pouco inchado), fomos para o meio da multidão que estava em frente ao palanque. Todos cantando “Lula-lá, brilha uma estrela…” era realmente bonito de se ver. Nilmário Miranda, Pimentel e Jô Moraes foram alguns dos discursantes. Vez por outra mostravam a contagem da Globo com os números mais recentes para governadores. Esperidião Amin perdeu! ÊÊÊÊÊÊÊÊ! Tarso Genro perdeu! AAAAAAAH! Zeca do PT ganhou! ÊÊÊÊÊ! Genoíno perdeu! AAAAAAH! E assim foi indo.
Ao som de “País Tropical” todo mundo cantou. “Eu sei que a vida devia ser bem melhor – e será! –, mas isso não impede que eu repita: é bonita, é bonita e é bonita!” – ao som de Gonzaguinha. Quem me conhece arregalaria um olho ao me ver tentando sambar, completamente esquecida de que detesto samba. E em “Luiz Inácio falou…”, dos Paralamas do Sucesso, só eu e minha irmã ainda lembrávamos dos versinhos inteiros. Mas paro por aqui, que não me lembro o nome de todas as músicas que se seguiram.
O que importava mesmo era a multidão agitadíssima, empunhando suas bandeiras vermelhas, cheia de alegria. Até o neném no colo do pai, incentivado pelo que via ao redor, começou a balançar sua bandeirinha, sem que ninguém pedisse. Bela foto para se estampar numa capa de jornal. E imaginem minha felicidade quando uma jornalista do sindicato foi dar um adesivo à minha irmã e acabou me dando um também. Estava escrito “Sou jornalista e voto Lula”.

Só não encontrei outros conhecidos. Depois fiquei sabendo que o professor Fausto, de Matemática, também tinha ido para lá comemorar. E a Carla, de História, nem se fala. Segundo ela, a histeria em que se encontrava é só um boato…
Quando eu estava chegando, por volta das 19h, várias pessoas gritavam para mim na rua, acenando sua bandeira. Ainda tímida, eu só sorria. Na volta, às 22h30, era eu quem gritava aos passantes, completamente esquecida de qualquer timidez. Fui até o carro balançando minha bandeira no meio da rua e mantive a postura através da janela. Coincidência ou não, nos carros que estavam na rua da Bahia só havia serristas. Pelo menos era o que suas caras de derrotados denunciavam.
(Tudo bem, tudo bem, isso é um jornal e eu não devo escrever essas coisas. Mas crônica é crônica e tenho mais é que dizer o que estou pensando. Os serristas do colégio que me desculpem, mas política é como futebol e religião: cada um tem sua ideia e, na vitória, todos querem pular seu carnaval e aproveitar a cara frustrada do que perdeu. Principalmente levando-se em conta que esse grupo que perdeu já está no poder há oito anos, para dizer o mínimo.)
Voltei para casa para acabar de ver a cobertura e presenciar minha primeira decepção com meu eleito: a exclusividade à Rede Globo, em pleno Fantástico. Mas isso é tema para outra crônica e era perfeitamente perdoável naquele meu estado de espírito. Fui dormir com o “Olê, olê, olê, olá… Lu-lá, Lu-lá” na cabeça e torcendo para que aquela euforia se mantivesse até o fim dos quatro anos de mandato. Mas com a certeza de que, tendo êxito ou não, a chegada do Lula ao poder no Brasil é uma mudança deliciosa e necessária em nossa História. E eu tinha participado dessa mudança através de meu primeiro voto.”
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Aos 17 anos e sem aprender ainda na Faculdade de Jornalismo sobre a importância do Que, Quem, Quando, Onde, Porque, Como numa reportagem, a Cris se saiu muito bem nesta aí para O Pasquim do Colégio Santo Antônio, colégio pertencente a uma congregação religiosa (e a primeira e única escola privada em que ela estudou). Cris me mostrou orgulhosa quando saiu o jornal e li sem a menor surpresa, pois já sabia há anos que ela seria excelente jornalista como a irmã mais velha, Viviane. E reli agora, com prazer renovado. Também votei no Lula por ser jornalista – mas não só por isso.
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Aprendi tudo sobre o bom jornalismo com você 🙂
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