Bolsonaro inelegível: os melhores trechos do voto do relator do TSE

Charge de Leandro Assis e Triscila Oliveira na 'Folha de S.Paulo' de 24/6/2023. Urna escrito 'fim' cai na cabeça de Bolsonaro, no desenho.
Charge de Leandro Assis e Triscila Oliveira na 'Folha de S.Paulo' de 24/6/2023.

Nesta terça-feira, 27 de junho, o corregedor-geral da Justiça Eleitoral e relator da Ação de Investigação Judicial Eleitoral (Aije) 0600814-85, ministro Benedito Gonçalves, votou pela inelegibilidade, por oito anos, de Jair Bolsonaro, por abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação.

Amanhã (29/6), os demais ministros do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) também vão votar, e espero que todos também mantenham Bolsonaro inelegível.

Além disso, já na esfera penal, espero que Bolsonaro seja condenado pelos vários crimes a que responde no Supremo Tribunal Federal (STF). Que tenhamos a sorte de nos vermos livres do pior presidente da República que já passou pelo Brasil.

Charge de Leandro Assis e Triscila Oliveira na 'Folha de S.Paulo' de 28/6/2023 sobre inelegibilidade de Bolsonaro.
Charge de Leandro Assis e Triscila Oliveira na ‘Folha de S.Paulo’ de 28/6/2023.

Neste post, vou reunir alguns trechos brilhantes do voto oral do ministro relator do TSE. Mas recomendo a todos que tirem um tempinho para ler o voto de Benedito Gonçalves na íntegra.

O discurso é grande, com 200 páginas, mas é uma verdadeira aula. Deveria ser lido em todas as faculdades de direito e de comunicação, dentre outras. Certamente será analisado por acadêmicos por muitas décadas, quando forem estudar esta época da História do Brasil que estamos vivendo.

Entre as páginas 12 e 37, por exemplo, o ministro nos ensina muito sobre o funcionamento da comunicação em tempos de internet e sobre como são criadas e fortalecidas as fake news.

Em vários trechos, como entre as páginas 67 e 75, faz uma análise impressionante da retórica do Bolsonaro, que é friamente calculada, ao contrário do que se pensa sobre sua suposta espontaneidade.

Os jornalistas não podem deixar de ler os trechos entre as páginas 113 e 118, que mostram como a Jovem Pan rasgou qualquer mínimo princípio de ética do jornalismo para fortalecer e amplificar os discursos conspiracionistas das lives de Bolsonaro.

O voto do ministro do TSE esmiúça a estratégia de comunicação do ex-presidente, que culminou numa tentativa de golpe, que colocaria em risco a democracia do país. Sua conclusão, emocionante, me fez lembrar o belo discursode Julio Strassera na Argentina.

Ler esse voto inteiro e relembrar o que vivemos entre 2018 e janeiro deste ano me causou grande desconforto. É como se estivéssemos dentro de um livro de ficção científica. Mas também me trouxe o alívio de perceber que ficamos livres de um perigo muito maior que rondava o Brasil, insuflado por Bolsonaro. Em dado momento, o ministro até comenta: “É espantoso”.

Realmente, é espantoso que tenhamos vivido e sobrevivido a tudo aquilo. Toda aquela onda de ódio e mentira com verniz oficialesco. A bem da verdade, ainda não sobrevivemos: o ovo da serpente já foi chocado, e ela continua viva, e pode voltar, seja na figura de Bolsonaro ou de outro. Mas precisamos viver um dia de cada vez…

Como eu disse, vale a pena ler na íntegra o voto oral do relator que decidiu tornar Bolsonaro inelegível por oito anos. Mas, para facilitar, deixo abaixo uma seleção que fiz dos trechos que achei mais importantes, entre aspas e na ordem cronológica do documento, resumidos por intertítulos meus.

Os 57 trechos mais importantes do voto do relator Benedito Gonçalves

1. Novas mídias

“Nos casos mais extremos, pessoas físicas ou jurídicas fazem uso de sensacionalismo, agressividade e fabricação de conteúdos falsos para reverberar crenças de um público que querem fidelizar. Na lógica da monetização, esses canais descobriram ferramentas poderosas para aumentar a popularidade e o engajamento, produzindo “bolhas” capazes de assegurar a sobrevivência dessas novas mídias. O novo cenário, inevitavelmente, produziu novas formas de praticar condutas abusivas.”

2. Abuso de poder nas redes sociais

“Hoje, redes sociais, blogs, canais e aplicativos preponderam como meio de veloz difusão das mensagens de cunho eleitoral e podem ser utilizados para perpetrar ilícitos que produzem efeitos rápidos e capilarizados. Os novos contornos do abuso de poder não atingem apenas o desvio do poder midiático. O uso da internet remodela, também, o abuso de poder político.”

3. Discursos ilícitos

A política é essencialmente performada por discursos. A palavra é o instrumento de governantes e parlamentares para transformar a realidade. Se assim é no campo da licitude, o mesmo ocorre quando se resvala para os ilícitos eleitorais”.

4. Discursos violentos e mentiras

“Exatamente em razão da grande relevância da performance discursiva para o processo eleitoral e para a vida política, não é possível fechar os olhos para os efeitos antidemocráticos de discursos violentos e de mentiras que coloquem em xeque a credibilidade da Justiça Eleitoral.”

5. Histórias fabricadas circulam mais rápido

“Encontra-se hoje empiricamente demonstrado que as notícias falsas produzem mais engajamento nas redes que notícias verdadeiras. Trago no voto os dados que indicam que as histórias fabricadas circulam 70% mais rápido que notícias verídicas, sendo que, no caso de conteúdos políticos, a velocidade chega a ser o triplo da usual. Esse alcance não é determinado por robôs, mas, sim, por humanos, atraídos pela “novidade” e, por isso, suscetíveis a compartilhar os conteúdos falsos.”

6. Raiva, angústias e frustrações

“A “raiva”, segundo o pesquisador, se torna um negócio: “uma grande fonte de energia que está em pleno desenvolvimento no mundo inteiro” e pode ser explorada politicamente. Como se nota, o problema dessa “nova propaganda” não é que ela sirva a uma ou outra vertente político-partidária, escolhida por qualquer pessoa com base em informações verídicas. O problema é que há uma dinâmica que interfere na própria autonomia dos sujeitos, que se vêm mobilizados de forma contínua por notícias falsas de teor agressivo, conspiracionista e/ou discriminatório, produzidas sob medida para sintonizar suas angústias e reverberar suas frustrações.”

7. Repúdio a fontes científicas e oficiais

“As “bolhas” operam como instâncias protegidas contra testes de validação dos conteúdos aceitos nessas comunidades. Fontes científicas e oficiais são repudiadas, o que inviabiliza o exercício da vigilância sistêmica. As recompensas emocionais decorrentes do engajamento virtual desestimulam o esforço cognitivo de avaliar se os demais membros do grupo são fontes confiáveis e se as informações compartilhadas são verídicas.”

8. Terraplanismo, pandemia e política

“Se esse comportamento pode, em tese, ser considerado inofensivo no que diz respeito ao terraplanismo, o mesmo não se pode dizer em relação a outros temas. Recentemente, a pandemia da Covid-19 serviu de triste laboratório para a observação de que o negacionismo científico pode determinar o aumento de riscos coletivos e até a morte. Da mesma forma, a desinformação política também deu mostras, no mundo, de seu poder de provocar o esgarçamento do tecido democrático.”

9. Candidatos como fontes de informação

“(…) candidatas e candidatos exercem um importante papel na coordenação do conhecimento. Essas pessoas disputam a confiança de outras em temas de interesse da sociedade. Atuam, assim, como fontes de informação. Usam da comunicação para convencer eleitoras e eleitores a agir de um determinado modo: apoiar pautas, engajar-se na campanha, convencer outras pessoas e, enfim, votar da forma sugerida. Para atingir esse objetivo, é lícito que emitam opiniões e interpretem fatos de acordo com sua visão e inclinação políticas. Mas lhes é vedado utilizar informações falsas como ferramenta de mobilização política, como estratégia de domínio do debate público ou, no limite, para criar riscos de ruptura democrática.”

10. Bolsonaro pessoalmente responsável por reunião com embaixadores

“(…) a prova produzida aponta para a conclusão de que Jair Messias Bolsonaro foi integral e pessoalmente responsável pela concepção intelectual do evento objeto desta ação [a reunião com embaixadores em julho de 2022]. Isso abrange desde a ideia de que a temática se inseria na competência da Presidência da República para conduzir “relações exteriores” (percepção distinta da que externou o Chanceler ao conceituar a matéria como “tema interno”), até a definição do conteúdo dos slides e a tônica da exposição (que parecem ter sido lamentadas pelo ex-Ministro Chefe da Casa Civil).”

11. Bolsonaro se vê como militar, à frente das tropas

“Mais um significativo componente retórico explorado no âmbito da normatividade de coordenação é o uso da primeira pessoa do plural para se referir às Forças Armadas. No ponto possivelmente de maior tensionamento do discurso, o então Presidente, em leitura distorcida de sua competência privativa para “exercer o comando supremo das Forças Armadas” (art. 84, XIII, da Constituição), enxerga-se como militar em exercício, à frente das tropas. As passagens deixam entrever um preocupante descaso em relação a uma conquista democrática, de incomensurável importância simbólica no pós-ditadura, que é a sujeição do poderio militar brasileiro a uma máxima autoridade civil democraticamente eleita.”

12. Forças Armadas contra inimigos imaginários

“O primeiro investigado, por mais de uma vez, enfatizou que os militares seriam técnicos extremamente competentes, em contraste com os servidores do TSE. As Forças Armadas não seriam apenas mais confiáveis no tema da segurança das eleições, como também vocacionadas a combater os inimigos (imaginários) que tramariam fraudes. E, se tanto fosse necessário, agiriam lideradas por seu “comandante supremo”, pelo bem da nação, “dentro das quatro linhas da Constituição” – ou, quem sabe, por extrema necessidade, fora delas.”

13. Nenhum indicativo de fraude nas urnas

“(…) nos documentos reiteradamente citados pelo primeiro investigado não há nenhum indicativo de manipulação de votos. Não há, ainda, qualquer menção a envio de senha a um magistrado que permitisse editar linhas de programação de sistemas desenvolvidos no âmbito no TSE e, com isso, preparar a urna ou o sistema de totalização para “transferir votos” de um candidato para outro. Não há, enfim, nenhuma menção à ocorrência ou à suspeita de fraude nas eleições presidenciais de 2018.”

Pronunciamento do presidente Jair Bolsonaro em 1/11/2022. Foto: Isac Nóbrega/PR
Pronunciamento do presidente Jair Bolsonaro em 1/11/2022. Foto: Isac Nóbrega/PR

14. Bolsonaro fabricou informações

“Ao abordar o inquérito na reunião com Chefes de Missões Diplomáticas, o primeiro investigado não apenas fabricou uma informação com absoluto descompromisso com o teor do documento. Também desafiou a determinação de autoridades policiais e judiciais. Isso porque, àquela altura dos acontecimentos, não havia qualquer margem para que o Presidente da República ignorasse o prejuízo ocasionado pela ampla publicização dos documentos oriundos do inquérito e de informações distorcidas a seu respeito.”

15. ‘Quatro linhas da Constituição’

“O uso da expressão “quatro linhas da Constituição” pelo ex-Presidente durante o seu mandato foi notório. As “quatro linhas” não eram explicitadas. Mas eram associadas às suas próprias ações. Também era sugerido que quem estivesse “fora” dessas quatro linhas seria por ele trazidos “para dentro”. A menção não é casual, pois toda a fala é guiada para apontar supostos desvios na atuação da Justiça Eleitoral. Além disso, a condicionante temporal, “até o momento”, deixa no ar se o comportamento do mandatário poderia ser alterado, e em quais condições.”

16. Manutenção de poder por via antidemocrática

“O primeiro investigado verbaliza e trata como “comum” a ideia da manutenção de poder por via antidemocrática. Logo em seguida avisa que ele não estaria planejando uma ação nos moldes citados. Isso, porém, é próprio à construção do pensamento intrusivo, uma vez que o enunciado “não pensem que eu conspiraria para me manter no poder” (aos moldes do viés “não pense em um elefante cor-de-rosa”) inevitavelmente faz pensar na ideia supostamente recusada.”

17. Sentimentos negativos e gatilho de urgência

“Junto com a repetição das inverdades factuais, um pensamento intrusivo foi persistentemente cultivado a cada vez que o então Presidente da República verbalizava seu desejo por eleições transparentes e por resultados autênticos. A mensagem comunicada era que as Eleições 2018 foram marcadas pela fraude e que uma conspiração contra sua reeleição rondava o pleito de 2022, colocando em risco a paz e a democracia. Conforme a dinâmica própria às fake News, essa mensagem mobiliza sentimentos negativos capazes de produzir engajamento consistente na internet. Dispara-se um gatilho de urgência, no sentido de que algo precisa ser feito para impedir que o risco venha a se consumar.”

18. ‘Até o momento’

“(…) o primeiro investigado inicia sua fala, em 18/07/2022, dizendo que “até o momento, não fez nada fora das quatro linhas da Constituição”. Porém, ao longo da exposição, são acionados os sentimento de desesperança e de urgência, propensos a ampliar a margem de tolerância com ações que viessem a ser ditas necessárias para debelar fraudes eleitorais.”

19. Aderir à crença, sem nenhuma prova

“O discurso se encerra sem nenhuma proposição às embaixadoras e aos embaixadores, a não ser a insistente oferta de Jair Messias Bolsonaro em compartilhar seus slides e, ainda, cópias do inquérito. Nada menos que um convite a que, rechaçando o TSE como fonte fidedigna de informações, aderissem à crença, sem nenhuma prova, de que o sistema eletrônico de votação adotado no Brasil não era capaz de assegurar que o eleito nas Eleições 2022 seria quem de fato recebesse mais votos.”

20. Fala com conotação eleitoral

“O exame minucioso do discurso de 18/07/2022, em seu contexto, demonstra que a fala teve conotação eleitoral, sob tríplice dimensão: a) tratou-se de risco de fraude nas Eleições 2022; b) houve promoção pessoal e do governo de Jair Bolsonaro em contraponto ao “outro lado”; c) narrou-se uma imaginária conspiração de Ministros do TSE para fazer com que um iminente adversário, já à época favorito em pesquisas pré-eleitorais, fosse eleito Presidente da República.”

21. Veiculação massiva de desinformação

“Portanto, o conteúdo, nitidamente eleitoral e desinformativo, foi veiculado de forma massiva via emissora pública e redes sociais do Presidente da República, pré-candidato à reeleição. Não há dúvidas de que, dentre os efeitos pragmáticos do discurso de Jair Messias Bolsonaro datado de 18/07/2022, está a mobilização de suas bases políticas por meio da difusão de: a) informações falsas a respeito do sistema eletrônico de votação; e b) teses conspiratórias sobre a atuação do TSE.”

22. Estratégia das lives de 2021

“(…) evidente que não havia expectativa de que o público em geral pudesse entender o teor de fragmentos de análises de auditoria, lidos em poucos minutos. O uso do material serviu, assim, apenas para emprestar verniz técnico e oficial às aberrantes especulações feitas por Eduardo Gomes e Jair Bolsonaro. Na realidade, para todos que assistiram, havia legítima expectativa de que o Ministro da Justiça somente passaria informações verídicas sobre a atuação da Polícia Federal, o que por si mitigaria qualquer necessidade para o público de tentar entender os intrincados termos técnicos ditos de passagem. O que importava para a audiência era a mensagem consolidada: relatórios da Polícia Federal corroborariam a ocorrência de adulteração de votos em 2014 e em 2018. O papel de Anderson Torres, independente da duração de sua fala, não foi de menor importância, pois usou de sua inquestionável autoridade de Ministro da Justiça para conferir uma chancela qualificada ao conteúdo da live. E fez isso sabendo que era absolutamente falso afirmar que tinha em mãos relatórios da Polícia Federal examinando aquelas ocorrências.”

23. Conspiracionismo como mobilização política

“Esse episódio demonstra o uso do conspiracionismo como ferramenta de mobilização política: visa-se substituir a deferência às instituições pelo repúdio a estas. O objetivo é subverter por completo a lógica da confiança e apresentar o então Presidente da República como líder capaz de conduzir o povo à uma “real” democracia, livre do jugo de especialistas.”

24. Distorções propositais dos fatos

“Não foram, portanto, simples deslizes de leigos tentando interpretar um documento. Não foram erros menores. Foram distorções severas de informações jurídicas e técnicas.”

25. Estado de alarmismo

“Criou-se um estado de alarmismo, decorrente da divulgação bombástica de um inquérito cujo conteúdo era praticamente ininteligível para a audiência, ao qual se atribuía o peso de “prova” de gravíssimas ocorrências no pleito de 2018. Estimulou-se a desconfiança contra uma instituição, partindo de presunções conspiracionistas.”

26. Tarefa árdua de combater inverdades

“A exaustiva análise da live/entrevista de 04/08/2021 e de seus desdobramentos demonstra o quanto é árdua a tarefa de resgatar sentidos verídicos quando os atributos da competência e da confiança – bases da comunicação que são essenciais para a evolução da sociedade humana – são abalados pela desordem informacional.”

27. Detalhes fantasiosos

“(…) o primeiro investigado, de forma espantosa, foi além. A ideia conspiratória que havia gestado, sobre o imaginário conluio envolvendo Ministros e servidores do TSE e autoridades internacionais, recebe detalhes minuciosos. O então Presidente passa a narrar cenas bem específicas, aptas a estimular a imaginação da audiência, descrevendo os supostos passos e pensamentos do hacker, com notas de mistério. A fantasia temerária atinge o ápice quando ele afirma para seu público, de forma literal, que, nas Eleições 2018, houve um “acordo” para que hackers desviassem ou excluíssem 12 milhões de votos que recebeu. Afirma, mais, que o quantitativo de votos não teria sido suficiente para garantir a vitória “do outro lado” e que, por isso, os contratantes teriam “dado o calote”, o que, enfim, teria levado o hacker a tornar pública a invasão.”

28. Discurso dúbio de Bolsonaro

““pra […] não falar amanhã que Bolsonaro mentiu, sem provas, tô adiantando −, não tenho provas. Então, mas alguma coisa aconteceu”. Construções desse tipo foram utilizadas para plantar suspeitas de interferência do TSE na investigação da Política Federal, para inventar uma fábula em torno do ataque hacker e até mesmo para tratar de sua futura candidatura.”

29. Desafio no combate à desinformação

“O TSE divulgou nota pública, restabelecendo a verdade dos fatos. Diante dos absurdos ditos na live, explicou de forma simples (mas técnica) algumas camadas de segurança que fazem com que as urnas eletrônicas sejam usadas há 25 anos de forma exitosa, em especial assegurando a autenticidade e o sigilo do voto. Porém, como é usual no desafio do enfrentamento à desinformação, uma nota reiterando uma verdade já conhecida não consegue competir com a excitação provocada pela mentira novidadeira.”

30. Dezoito menções às Forças Armadas em discurso

“As Forças Armadas passaram, efetivamente, a ocupar um papel central na estratégia do primeiro investigado para confrontar o TSE no âmbito da normatividade de coordenação. E isso acabou dando contornos muito problemáticos à mensagem difundida em 18/07/2022 para a comunidade internacional e para a sociedade. Em um discurso que tratava do pleito iminente, o então Chefe de Estado Brasileiro mencionou as “Forças Armadas”, por dezoito vezes, sempre com uma percepção hiperdimensionada do convite para integrar a Comissão de Transparência do TSE. O pré-candidato lembrou à audiência, por duas vezes, sua condição como “chefe supremo” das Forças Armadas, em ambas para indicar que não endossaria uma farsa. Para se ter uma ideia, a palavra “democracia” apareceu apenas quatro vezes – e, em nenhuma delas, foi reconhecida como um valor associado à realidade do processo eleitoral.”

31. Conteúdos falsos e ataques insidiosos

“(…) nem opinião, nem dúvida, nem denúncia – não foi disso que tratou o evento de 18/07/2022. A fala do primeiro investigado foi composta por conteúdos falsos e por ataques insidiosos à reputação de Ministros do TSE. Ambos os enfoques miraram esgarçar a confiabilidade do sistema de votação e da própria instituição que tem a atribuição constitucional de organizar eleições.”

32. Eventos imaginários apresentados em monólogo

“O primeiro investigado não promoveu nenhuma abertura ao diálogo, pois esse conceito que envolve interação de boa-fé. Com efeito, a exposição feita no Palácio da Alvorada não partiu da necessária escuta às inúmeras explicações já apresentadas pela Justiça Eleitoral. Quanto menos almejou chegar a um consenso. Apresentou apenas um monólogo, que tomou como “realidade” eventos imaginários, que não se sustentavam diante de evidências objetivas, explicações técnicas e argumentos racionais.”

33. ‘Em quem confiar?’

“Em síntese, cada vez que explorava as credenciais da Presidência da República para contestar a competência e a confiabilidade do TSE por meio de ataques à integridade dos magistrados e dos servidores, o primeiro investigado contribuiu para criar um curto-circuito cognitivo frente à pergunta básica que guia a espécie humana em sua exitosa jornada na produção de conhecimento coletivo: em quem confiar?”

34. Sociedade bombardeada com pauta fervilhante

“(…) se a confiabilidade do sistema eletrônico de votação era uma pauta fervilhante faltando menos de três meses para o pleito, em um país onde jamais se comprovou adulteração de votos desde que utilizado esse sistema, isso se deveu exclusivamente à desordem informacional que bombardeou a sociedade sobre o tema. A apresentação de Jair Messias Bolsonaro para os embaixadores não estava permeada de conteúdos técnicos destinados a dissipar dúvidas. Toda a narrativa, amparada em elementos inverídicos e distorcidos, era pura e simplesmente de que o sistema não era seguro, que fraudes ocorreram em 2018 e que havia risco iminente de que se repetissem em 2022.”

35. Dois meses e meio antes das eleições

“Faltando dois meses e meio para a eleição, disse para diplomatas o mesmo que falara nas live de 2021: que havia tempo para fazer as correções e que estava falando disso antes do pleito, pois não pretendia dar um golpe.”

36. Forças Armadas como redenção

“A redenção possível, na leitura do então Presidente da República, se fazia por um único caminho: as Forças Armadas, comandadas por seu “chefe supremo”. A “participação das Forças Armadas” é o que asseguraria “o contrário” de um “golpe”, termo que foi por ele próprio utilizado. Nenhuma medida extrema se faria necessária, desde que observada a condicionante que ele sugeria: estava “questionando antes porque temos tempo ainda de resolver esse problema”.”

37. Jogo mental bem elaborado

“(…) nada há de simples no bem elaborado jogo mental de insistir na reivindicação por transparência ao mesmo tempo em que se deslegitima dados empíricos, consensos políticos e decisões técnicas que sustentam a robustez dos mecanismos de transparência já existentes.”

38. Negacionismo geral

“O negacionismo se coloca como premissa: o então Presidente da República não aceita como satisfatório nenhum método de auditoria existente; não aceita que a rejeição da PEC nº 135/2019 tenha sido legítima; e não aceita que possam existir boas razões técnicas para que o TSE recusasse e diferisse parte das propostas apresentadas pelas Forças Armadas.”

39. Condições para aceitar resultado das eleições

“Sempre que dizia estava disposto a aceitar o resultado das eleições, o primeiro investigado utilizava uma condicionante: se as eleições fossem limpas. Afirmava isso à exaustão, impregnando o debate público com a mensagem implícita de que, inversamente, não estaria obrigado a aceitar resultados em caso de fraude eleitoral.”

40. Descumpriu promessa de aceitar resultado das eleições

“Perante a sociedade brasileira, a promessa de aceitação pacífica dos resultados – a envolver algum respeito a símbolos democráticos, fosse um telefonema, um discurso ou a participação em solenidade oficial – nunca se concretizou.”

41. Narrativa persecutória

“A prática discursiva do primeiro investigado foi traçada, desde muito tempo, para indicar que sua derrota nas urnas seria a prova cabal de que os resultados foram adulterados. A manipulação de votos sempre foi tratada como uma premissa absoluta; como a explicação única que conferia sentido à narrativa persecutória do então Presidente.”

42. ‘É espantoso’

“O discurso está embebido em conspiracionismo, mas não só. Trata-se de um conspiracionismo já banalizado, assumido como trivial. A reunião de 18/07/2022 mostrou ao mundo um Presidente da República que transformou em algo corriqueiro afirmar que o sistema eleitoral de seu país foi fraudado, e que dirigentes do órgão de governança eleitoral tinham interesse em que isso se mantivesse assim, para beneficiar um candidato. É espantoso.”

43. Bolsonaro nunca cogitou que poderia perder

“O discurso ativou sentimentos negativos, de que a democracia está em risco por conta de um sistema corruptível, e que era preciso fazer algo para impedir que o pior ocorresse. Em nenhum momento foi seriamente cogitada a alternativa de o primeiro investigado ser derrotado no voto democrático.”

44. Lembranças do Golpe de 1964

“Medidas extremas começaram a se tornar palatáveis, porque seriam justificadas ante a iminência de uma perda irreversível dos valores da pátria. São gatilhos que, infelizmente, trazem à memória golpes de estado, tais como o que mergulhou o Brasil no autoritarismo, em 1964. Com efeito, um golpe de Estado não se anuncia como tal. Seus perpetradores buscam convencer que da legitimidade da tomada do poder, ou de conservação, à margem de regras pré-estipuladas.”

45. Tentativa de legitimar um governo autoritário

“Congregando todos esses sentidos, a última justificativa adotada para a decretação do AI-5 foi a de que “fatos perturbadores da ordem são contrários aos ideais e à consolidação do Movimento de março de 1964, obrigando os que por ele se responsabilizaram e juraram defendê-lo, a adotarem as providências necessárias, que evitem sua destruição”. Estão presentes todos os elementos de suporte de um governo autoritário: pretensão de legitimidade, imposição de uma ordem interna, acontecimento fundador e tática de tomada e manutenção do poder.”

46. Flerte perigoso com o golpismo

“O discurso de 18/07/2022 foi um flerte perigoso com o golpismo. Em pleno regime democrático, um Presidente eleito tornou hábito advertir à sociedade de que, se até o momento estava “dentro das quatro linhas da Constituição”, talvez em algum ponto fosse obrigado a sair delas, para defender uma certa noção de democracia pela qual a nação ansiaria.”

47. A minuta na casa de Anderson Torres

“(…) é evidente que a minuta materializou em texto formalmente técnico uma saída para o caso de surgirem indícios de fraude eleitoral em 2022. Isso em contexto no qual a hipótese de fraude era tratada como equivalente à derrota do candidato à reeleição presidencial. Em segundo lugar, ao testemunhar em juízo, Anderson Gustavo Torres reconheceu que manuseou e leu parcialmente a minuta, em sua residência. Esse fato não é sem relevância, pois atesta tanto a existência do documento, na forma como tornada pública e juntada aos autos, quanto o fato de que o ex-Ministro da Justiça do governo do primeiro investigado teve acesso à proposta.”

48. Banalização do golpismo num governo que difunde mentiras

“O relato, em síntese, é de quem, exausto ao final de um dia de trabalho, tivesse contato com um texto enfadonho, e na manhã seguinte nem mesmo lembrasse do que havia lido. A minuta de estado de defesa, cujo teor abordava uma intervenção direta do Poder Executivo nas atribuições do Tribunal Superior Eleitoral, não entrou minimamente no horizonte de preocupações do então Ministro da Justiça. Ilustra-se, com isso, a banalização do golpismo nos bastidores de um governo que tinha à frente um mandatário habituado a difundir mentiras a respeito do sistema eletrônico de votação e a pregar o risco iminente de haver uma fraude em 2022. Os termos que aqui utilizo são fortes, mas são inevitáveis diante do quadro instalado.”

49. Minuta não causou qualquer desassossego

“(…) está evidenciada a convergência discursiva entre a apresentação feita aos embaixadores, em 18/07/2022 e a minuta revelada em 12/01/2023. Não se tratava de um papel ao vento, mas, sim, de documento que estava na residência do ex-Ministro da Justiça. (…) no ambiente gestado por contínuos questionamentos à idoneidade do TSE e à transparência do sistema eletrônico de votação, a circulação da minuta nos bastidores do governo não causou qualquer desassossego.”

50. Falácia do discurso de Bolsonaro

“O que se conclui é que o golpismo foi um efeito da prática discursiva exercitada na reunião de 18/07/2022. Em outras palavras, é uma falácia afirmar que haveria uma disposição do primeiro investigado para, em algum momento, aceitar como legítimo um resultado eleitoral que lhe fosse desfavorável.”

51. Ideias radicais de ruptura do sistema

“Os frutos previsíveis eram a desconfiança, o conspiracionismo, o medo e o estado de urgência. Não é de surpreender que, no meio desses frutos, aparecessem ideias radicais de ruptura do sistema, com a falsa crença de que poderiam ser um novo terreno para plantar sua visão de democracia e liberdade.”

52. Naturalização de absurdos

“A minuta de decreto de estado de defesa e sua receita de intervenção no TSE, encontrada sob um porta-retrato na residência do ex-Ministro da Justiça do governo Bolsonaro, está longe de ser o fato central desta ação. É apenas uma imagem, quase uma parábola, de como pensamentos intrusivos, em tudo assemelhados aos que o primeiro investigado difundiu, são capazes de naturalizar absurdos.”

53. Finalidade eleitoral

“(…) a reunião teve nítida finalidade eleitoral, mirando influenciar o eleitorado e a opinião pública nacional e internacional. Esse ponto abrange tanto o discurso quanto o perfil do evento. O discurso teve conotação eleitoral, inserindo-se no contexto das eleições presidenciais de 2022.”

54. Acampamentos nos quarteis e paranoia

“(…) é possível concluir com a segurança necessária que a estratégia de descredibilização das urnas eletrônicas e os ataques à Justiça Eleitoral contribuíram significativamente para estimular um ambiente de não aceitação dos resultados. (…) não é o caso de se avaliar se pessoas específicas foram intimamente transformadas pela mensagem do primeiro investigado e levadas, por exemplo, a acampar em frente a quartéis pedindo intervenção militar. Esse não é o ponto. O ponto é que restou evidenciado que a prática discursiva exercitada em 18/07/2022 pelo primeiro investigado, de incitar a desconfiança no sistema eletrônico de votação e na própria Justiça Eleitoral, tinha como função pragmática transmitir a mensagem que as Eleições 2022 estavam em risco de serem fraudadas. O êxito desse objetivo é mensurável pelo forte engajamento de sua base de apoio nas redes sociais, mantida em contínuo estado de excitação e, até mesmo, de paranoia.”

55. Silêncio não põe ponto final em narrativa fake

“O evento de 18/07/2022 foi, sem dúvida, planejado e executado como um contra-ataque na guerra desinformacional que o primeiro investigado cultivou sem trégua. Jamais, de sua parte, foi colocado um ponto final na narrativa da fraude. Após ser derrotado na tentativa de reeleição em 2022, o primeiro investigado não reconheceu publicamente a vitória de seu adversário. O silêncio – por parte de quem havia abraçado uma contundente campanha anti-institucional que teve por alvos preferenciais a Justiça Eleitoral e o sistema de votação – é bastante eloquente.”

56. Bolsonaro plantou ideia de fraude nas eleições

“O primeiro investigado deixou que seguissem pairando no ar os pensamentos intrusivos com os quais transformou a contestação à autenticidade dos resultados em pauta eleitoral de primeira ordem. Jair Messias Bolsonaro não agiu apenas para convencer eleitoras e eleitores de que era a melhor opção política em um ambiente normal e republicano. Atuou obstinadamente para plantar a ideia de que qualquer resultado diferente de sua reeleição traria consigo sólidas suspeitas de fraude.”

57. Belíssimo discurso final aos cidadãos e cidadãs democratas

O corregedor-geral da Justiça Eleitoral e relator da Ação de Investigação Judicial Eleitoral (Aije) 0600814-85, ministro Benedito Gonçalves, votou pela inelegibilidade, por oito anos, de Jair Bolsonaro, candidato à Presidência da República nas Eleições 2022, por abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação. Foto: Secom / TSE
O ministro do TSE Benedito Gonçalves. Foto: Secom / TSE

“O golpismo, que no século XXI paira na superfície do tecido social, exige vigilância ininterrupta por parte de democratas de qualquer espectro. Cabe a todos nós reafirmar diariamente um pacto de civilidade, pano de fundo para que opiniões políticas e preferências eleitorais possam ser manifestadas de forma livre.

Por isso, o caos informacional em torno do sistema eletrônico de votação e a grave crise de confiança institucional por ele gerado devem ser enfrentadas em conjunto. Não apenas por tribunais, magistradas, magistrados, servidoras e servidores. Mas, também, por todas as cidadãs e todos os cidadãos, titulares que são do direito a um devido processo eleitoral: isonômico, normal e legítimo. Eleitoras e eleitores têm direito não apenas a votar livremente, mas a participar de um debate público calcado em informações verídicas, para que possam formar opiniões e manifestar preferências, em ambiente de estabilidade democrática.

Soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana e pluralismo político: que possamos diuturnamente nos aprimorar, como sociedade, a partir desses fundamentos.

Que o sentido e as nuances de cada um deles seja construído no debate de ideias, a salvo de ideologias totalitárias.

Que as bandeiras que eles inspiram possam pautar as divergências políticas salutares à democracia, jamais servir para conclamar a eliminação de adversários, vistos como inimigos.

Que sejam, enfim, a chave para reconstruir pontes de diálogo, pois, citando José Luiz Aidar Prado, “a única forma de atravessar os imaginários cristalizados das fantasias ideológicas é coletivamente pela palavra, rompendo […] as palavras de ódio, os performativos de injúria, sem cair na polarização imaginária, criando vida coletiva onde ela tenderia a inexistir ou a existir somente na forma de rebanhos que seguem o líder”.

Por uma última vez, então, neste voto: soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana e pluralismo político. Se estas forem as multicitadas “quatro linhas da Constituição”, que possamos cultivá-las, com afeto, com responsabilidade e sem medo.

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Por Cristina Moreno de Castro (kikacastro)

Mineira de Beagá, escritora, jornalista (passagem por Folha de S.Paulo, g1, TV Globo, O Tempo etc), blogueira há mais de 20 anos, amante dos livros, cinéfila, blueseira, atleticana, politizada, otimista, aprendendo desde 2015 a ser a melhor mãe do mundo para o Luiz. Autora dos livros A Vaga é Sua (Publifolha, 2010) e (Con)vivências (edição de autor, 2025). Antirracista e antifascista.

3 comments

  1. Cris, assisti a praticamente toda a leitura ao vivo do resumo do relatório. Você fez um resumo criterioso e fiel da fala do ministro relator do processo no TSE
    Parabéns a ele e a você. Os arquivos do blog se enriqueceram muito. Boa leitura a todos.

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