Saúde mental das crianças: a importância do brincar e do afeto

Pai carrega filho e brinca com ele, enquanto o abraça. Criança está super feliz e sorridente. Foto transmite alegria, intimidade, vínculo afetivo e brincadeira.
Pais e mães devem brincar com seus filhos, e oferecer uma educação cheia de afeto e de conexão. Foto: Dan Burton / Unsplash

Eu conheci o médico Daniel Becker, um dos maiores pediatras do Brasil e um dos pioneiros da pediatria integral, quando eu trabalhava na “Canguru“, uma revista especializada em primeira infância.

Citei suas ideias em uma reportagem de capa da revista de janeiro de 2018 em que eu falava justamente sobre o quanto o brincar é fundamental. (Ela pode ser lida na íntegra a partir da página 30 desta revista, já que o site já saiu do ar).

Ontem vi um vídeo de 10 minutos que ele fez em sua conta no Instagram (que, por sinal, é maravilhosa) em que ele fala que as crianças e adolescentes estão vivendo uma crise de saúde mental sem precedentes na história. Agravada pela pandemia, mas causada por inúmeros outros fatores.

E, ao longo desses dez minutos de vídeo, ele dá uma verdadeira aula para pais e mães contornarem este problema. Minha sugestão é que todos assistam ao vídeo e o compartilhem em sua rede de contatos. Sério: é muito bom!

Mas, como sei que muita gente não tem conta no Instagram nem paciência de ouvir longos vídeos, e como acho uma pena que estas informações se percam no mundão da internet, tomei a liberdade de transcrever tudo o que o dr. Daniel Becker disse e transformar no texto abaixo.

Escrevi ipsis litteris, da forma coloquial/oral usada por ele no vídeo, que é extremamente clara e fácil de ser entendida por todos, e que coloquei sempre entre aspas. A única coisa que fiz de diferente, para facilitar ainda mais a fluidez do que se tornou um textão, foi colocar alguns intertítulos entre os parágrafos e transformar em tópicos algumas enumerações que ele fez.

Espero que estas informações tão valiosas, verdadeiras pérolas, possam alcançar muitas famílias!

Agora, vamos à fala do dr. Daniel Becker:

 


Crise na saúde mental de crianças e adolescentes

“Estamos vivendo a pior crise de saúde mental e emocional que a infância e adolescência já viveram na história da humanidade, especialmente os pré-adolescentes, adolescentes e adultos jovens.

Entre eles os casos de:

  • crises de pânico,
  • crises de ansiedade,
  • automutilação,
  • depressão,
  • ideação suicida,
  • tentativa de suicídio
  • e outros males emocionais e mentais, [que] estão aumentando de forma exponencial.

Essa crise já precede a pandemia e foi agravada na pandemia, claro.”

Menina criança loira triste, cobrindo o rosto com as mãos. Fundo preto.
Crianças e adolescentes nunca tiveram tantos problemas de saúde mental como agora. Foto: Caleb Woods / Unsplash

Medicações psiquiátricas para crianças?

“A resposta que a sociedade tem para essas crianças e adolescentes é o uso de medicação psiquiátrica. Tem uma pobreza de resposta pra essas crianças. A gente podia estar fazendo muito mais. Essas crianças estão tomando uma, duas, quatro, cinco medicações psiquiátricas, que têm efeitos colaterais graves, muitas delas, cumulativos, e podem levar a uma série de problemas, físicos inclusive.”

Foto mostra boca de adolescente, que usa piercing no nariz, que está prestes a tomar um medicamento antidepressivo.
Tem algo errado quando crianças e adolescentes só encontram conforto para suas angústias com diversos medicamentos psiquiátricos. Foto: lilartsy / Unsplash

No Brasil a crise deve ser ainda pior

“Como a gente faz pra evitar essa crise? Não é fácil, porque as condições do mundo, especialmente no Brasil – onde esta crise deve ser muito pior, mas nós não temos os números, porque não temos ministérios que funcionem –, no Brasil dominado pela desigualdade extrema, pela violência politica, pelo ódio, por um governo de extrema-direita que está destruindo todos os setores do país e que destrói o futuro das crianças também, ao acabar com a cultura brasileira, especialmente com a floresta, o meio ambiente… Imagina você ser adolescente e saber disso que está acontecendo, e olhar pro seu futuro e ver estas nuvens negras que vão se acumulando ali – não é fácil.”

Adolescente com gorro, visto de costas, olhando pra baixo, com a cabeça voltada para o chão, em sinal de tristeza e depressão.
Adolescentes brasileiros vivem crise de saúde mental ainda pior que no restante do mundo. Foto: Andrew Neel / Unsplash

As causas desta crise de saúde mental

“Existem formas de a gente tentar atenuar esta crise de estresse, que tem inúmeros fatores:

  • no [pouco] convívio dos pais,
  • no excesso de telas,
  • na comida ultraprocessada,
  • na adultização,
  • nas escolas hiperexigentes e conteudistas,
  • no confinamento.

Enfim, uma série de fatores de estresse que estão levando essas crianças a uma infância difícil e portanto a uma adolescência pesada, onde esses problemas vão se acumulando e vão gerando também, claro, junto com outros, junto com a pandemia – que foi, realmente, um agravante terrível – uma crise de saúde mental dessas proporções.”

Foto mostra vários adolescentes lado a lado, todos eles olhando para a tela do celular e sem interagir entre si.
Excesso de telas também contribuiu para crise na saúde mental de crianças e adolescentes. Foto: Creative Christians / Unsplash

A importância do brincar

“Como a gente faz – [falando] de forma simplificada, porque esse assunto é muito complexo – pra tentar evitar pelo menos que essa crise bata às portas da nossa família? Tem duas coisas que são fundamentais, para que se chegue à adolescência, seu filho, de uma forma mais leve, e mais confiante e mais saudável.

A primeira delas é entender a importância do brincar. Sempre repito isso aqui, mas é um papo sério. Não é um papo de “ah, legal, brincar”. A brincadeira é a linguagem essencial da criança, a linguagem pela qual ela se compreende, se explora, se conhece – e nada mais importante do que o autoconhecimento, né?

Foto mostra bebê, visto de cima, cercado de diversos brinquedos.
Brincar é importante desde a época dos bebês. Até os adultos deveriam brincar mais! Foto: Yuri Shirota / Unsplash

Comece lá pelo bebê que vai chupar o seu dedinho, já é um começo de brincadeira, e estende isso até a adolescência. Brincar é a melhor forma de se conhecer pra criança. E é a forma como também a criança compreende o mundo. Começa a brincar com objetos e vai evoluindo nesse brincar até a adolescência. Infelizmente adultos brincam pouco, brincam menos do que deveriam. Esse brincar também é uma forma fundamental de conhecer o mundo e, finalmente, uma forma de se expressar no mundo. A criança se expressa pelo brincar. E e tão importante a gente aprender a se expressar.”

Foto mostra adolescentes brincando, muito felizes, ao ar livre.
Brincadeira é fundamental para crianças e adolescentes e é uma forma de elas se expressarem. Foto: MI PHAM / Unsplash

Habilidades que ganhamos com as brincadeiras

“Brincar é a forma como a natureza deu aos mamíferos, todos os mamíferos, de se preparar pra vida adulta. O leãozinho brinca de caçar. Os povos tradicionais brincam de cozinhar, de dançar, de caçar, de construir. É a forma como eles aprendem essas tarefas da vida adulta.

E as habilidades que a criança da nossa civilização ganha brincando:

  • foco,
  • execução de tarefas,
  • exploração,
  • curiosidade,
  • criatividade,
  • solução de problemas,
  • avaliação de risco,
  • colaboração.
Três crianças pequenas brincando na areia, uma delas com balde na mão.
Crianças desenvolvem diversas habilidades durante uma brincadeira, especialmente ao ar livre. Foto: Fabian Centeno / Unsplash

São habilidades fundamentais pro seu futuro. Ela vai aprender coisas que nenhuma aula ensina pra ela. Nenhuma aulinha extracurricular vai ensinar essas habilidades pra ela.”

A importância de brincar na natureza

“O brincar, portanto, é fundamental. Especialmente o brincar na natureza, onde a criança exercita também uma série de habilidades, e fortalece seu corpo, fortalece sua imunidade, se beneficia de inúmeras características desse ambiente, que vão tornar esse brincar ainda mais produtivo, ainda mais benéfico pra ela.”

Crianças brincando de roda na natureza.
Brincar no verde, na natureza, é ainda mais rico para os pequenos. Foto: Jay Chen / Unsplash

Brincar também é bom em casa

“Então o brincar [é importante], especialmente na natureza, mas também em casa.

O brincar criativo em casa, brincar que não depende de aparelho eletrônico:

  • Lego,
  • massinha,
  • carrinho,
  • boneca,
  • desenho,
  • pintura,
  • instrumentos musicais,
  • panela,
  • colher de pau,
  • qualquer coisa criativa.”
Menino montando peças com Lego.
Brincar em casa também é bom, de preferência com alguma atividade que explore a criatividade, como Lego, massinha, arte etc. Foto: Kelly Sikkema / Unsplash

Brincar é remédio contra o estresse

“Especialmente brincar conjunto, o brincar tradicional, brincar com seus pais, seus amiguinhos, é absolutamente fundamental. É o melhor remédio contra o estresse.

A Academia Americana de Pediatria fez um artigo de revisão em 2018 exortando os pediatras que prescrevessem o brincar. E nós fizemos isso aqui também, em duas revisões na Sociedade Brasileira de Pediatria, sobre o brincar e a natureza.

Então, valorize o brincar. Leve seu filho pra brincar o maior número de vezes possível por semana, permita que ele brinque em casa, não ceda o celular com tanta facilidade, deixe ele brigar um pouquinho. Brinque um pouquinho pra induzir – tem muitas formas de ajudar a criança a brincar mais.”

Criança pequena brincando de jogar folhas para o alto.
Brincar é o melhor remédio contra o estresse! Foto: Scott Webb / Unsplash

Convivência e educação respeitosa com a criança

“A segunda coisa: conviva e tenha uma educação respeitosa com ela. Porque uma criança que tem uma educação respeitosa, carinhosa, afetuosa, olho no olho, abraço e toque, é uma criança que vai desenvolver:

  • autoconfiança,
  • respeito próprio
  • e autoestima.

E vai aprender as coisas pela orientação dos pais, pelo diálogo. Vai aprender a dialogar. Vai aprender a empatia quando tiver a empatia dos pais.”

Castigo, grito e palmada não adiantam nada

“O castigo, a gritaria, o autoritarismo, especialmente a palmada, são fatores de estresse, além de não ensinarem nada. São fatores que levam a criança a uma piora da saúde mental. Ela se sente desrespeitada, amedrontada, ela aprende pelo medo e não pela compreensão. Ela não cresce, ela se encolhe.”

Foto em preto e branco mostra criança com rosto tenso ao ouvir um adulto gritando com ela, apontando o dedo em sua direção.
Castigo, gritaria e autoritarismo não ensinam nada para a criança além de que ela deve ter medo de você. Foto: Artyom Kabajev / Unsplash

Conexão com filho vai ser fundamental na adolescência

“A educação respeitosa, especialmente o convívio amoroso, são formas fundamentais de desenvolver uma intimidade de conexão profunda com seu filho. E essa intimidade vai ser fundamental na adolescência, quando ele estiver cumprindo a tarefa de se afastar da família – que é uma tarefa vital da adolescência – e se aproximar do grupo de amigos, ele vai ter na sua família o porto seguro. Vai voltar pra sua família sabendo que ali é ele amado, ali ele pode confiar, ali ele vai encontrar um lugar de orientação, de calma e respeito, um lugar onde ele pode falar as coisas.

Foto mostra três amigas adolescentes rindo e se abraçando.
É natural, na adolescência, o afastamento da família e o fortalecimento dos grupos de amigos. Foto: Priscilla Du Preez / Unsplash

Seu filho na adolescência, quando ele fizer uma coisa errada, precisa correr pra você, e não de você. É fundamental construir essa relação de confiança, de amor, pra que, por mais que ele vá cometer seus erros, suas saidinhas e mentiras na adolescência – que são parte da formação dele como ser humano –, ele vai saber que ele pode confiar em você, que vai continuar sendo uma fonte de orientação, de sabedoria, de boas escolhas. Especialmente ele vai contar pra você muitas vezes as coisas que estão acontecendo com ele, vai falar do que ele está sentindo e da dificuldade dele. Essa relação de confiança é muito importante. Por mais que eles se afastem, vão estar próximos de outra maneira.

Mãe e filha em momento de intimidade. Mãe contando algo no ouvido da criança.
A conexão, a intimidade, o vínculo que você cria com seus filhos na infância pode ajudar a fortalecer o relacionamento entre vocês também na adolescência. Foto: Sai De Silva / Unsplash

Então, cuidado também com essa relação amorosa, respeitosa, que cultiva a segurança, a confiança e o autorrespeito da criança na adolescência. Dessa forma você tem mais chance de chegar a esta fase na sua família com um adolescente mais feliz, mais saudável, com menos necessidade de medicações e mais capaz de desenvolver também uma vida adulta saudável, produtiva e feliz – que é o que todos nós queremos.” 😉

 

Leia também:

 

➡ Quer reproduzir este ou outro conteúdo do meu blog em seu site? Tudo bem!, desde que cite a fonte (texto de Cristina Moreno de Castro, publicado no blog kikacastro.com.br) e coloque um link para o post original, combinado? Se quiser reproduzir o texto em algum livro didático ou outra publicação impressa, por favor, entre em contato para combinar.

➡ Quer receber os novos posts por email? É gratuito! Veja como é simples ASSINAR o blog! Saiba também como ANUNCIAR no blog e como CONTRIBUIR conosco! E, sempre que quiser, ENTRE EM CONTATO 😉

Responda ao censo do Blog da Kikafaceblogttblog

Por Cristina Moreno de Castro (kikacastro)

Mineira de Beagá, jornalista (passagem por Folha de S.Paulo, g1 e TV Globo, UOL, O Tempo etc), blogueira há 20 anos, amante dos livros, poeta, cinéfila, blueseira, atleticana, politizada, otimista, aprendendo desde 2015 a ser a melhor mãe do mundo para o Luiz. Antirracista e antifascista.

Deixar um comentário