‘A Festa do Bode’: leitura obrigatória para nunca esquecermos do perigo dos ditadores sanguinários

Alegoria do mau governo, de Lorenzetti. Quadro que está na capa do livro 'A Festa do Bode', de Mario Vargas Llosa.
Alegoria do mau governo, de Lorenzetti.

Este livro de Mario Vargas Llosa deveria ser lido por todo mundo. Especialmente pelos latino-americanos, que já tanto sofreram com ditaduras sangrentas ao longo de boa parte do século passado – e ainda não aprenderam. Seguem cultuando líderes políticos como se fossem deuses sem defeitos e inabaláveis, seja quais forem os disparates (ou crimes) que cometam.

O personagem principal deste livro é Trujillo, o ditador que comandou a República Dominicana com mãos de ferro ao longo de mais de três décadas. Tudo neste livro, assim como era naquele país nos anos 60, gira em torno dele.

Trujillo não foi um ditador qualquer. Além de ter sido sanguinário, de ter matado ou mandado matar todos os seus rivais políticos – jogando os corpos para os tubarões, para que nunca fossem encontrados –, ele levou ao último grau a ideia de culto à personalidade.

A própria capital do país, Santo Domingo, foi rebatizada de Trujillo. Estátuas do “Benfeitor”, do “Chefe”, do “Grande Pai” ou “Generalíssimo”, algumas das alcunhas de Trujillo, foram erguidas por todo canto. As escolas obrigavam as crianças a lerem discursos que literalmente endeusavam o ditador. Não é à toa que, quando ele foi assassinado, filas e mais filas de pessoas, algumas histéricas, se formavam diante do palácio do governo, querendo se despedir do defunto.

Enquanto isso, a família inteira de Trujillo foi enriquecendo às custas do país, com direito a se apropriar de todas as empresas lucrativas da República Dominicana.

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Tudo isso é contado de forma incrível pelo mestre das palavras e prêmio Nobel peruano que é Vargas Llosa. Não de um jeito didático e escolar, mas como uma história cheia de intrigas e emoções, com muito suspense, daquele jeito que só ele sabe fazer.

Llosa dividiu a história em três núcleos: um deles é contado a partir da visão do próprio Trujillo. Já perto dos 70 anos de idade, no final de sua vida. Esse núcleo nos ajuda a entender como os políticos que sustentavam o regime funcionavam, pensavam e se digladiavam. Como o ditador os mantinha sempre tensos, inseguros, querendo agradá-lo para manterem-se no poder – e, sobretudo, vivos. Como eles caíam em desgraça com um estalar de dedos do “Chefe”.

O segundo núcleo conta a história dos homens revolucionários que prepararam o atentado contra Trujillo, que culminou em sua morte, em 1961. Por esse núcleo ficamos sabendo mais detalhadamente dos horrores desta ditadura.

E o terceiro núcleo é o de Urania, uma mulher de 49 anos, que retorna a Santo Domingo 35 anos depois de deixar o lugar cheia de tristeza, rancor e ódio, e que se encontra com seu pai doente, que outrora foi homem forte na era Trujillo. Ou seja, é um núcleo descolado temporalmente dos outros dois, formado por memórias doloridas de Urania, que chegam para complementar o quebra-cabeças que a gente conhece nas outras histórias.

Assim como em outros livros de sua autoria, Llosa vai costurando essas histórias todas, passado e presente, com uma maestria de fazer a gente ficar embasbacado. Ele tem um domínio tão grande do texto que nem precisa colocar explicações ou frases de introdução: mescla passado e presente entre um parágrafo e outro e a gente só flutua entre essas mudanças temporais bruscas, sem sentir nenhum sacolejo.

Ao entremear três núcleos tão diversos, o autor consegue nos prender com o suspense, com a vontade de querer saber o que acontece em seguida, e que só saberemos muitas páginas depois. E, mesmo sendo tantos personagens e tantos pormenores sobre uma história que, pelo menos para mim, era desconhecida, a gente não se perde em nenhum momento.

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Eu não tenho nenhuma familiaridade com a história da República Dominicana, então não posso atestar sobre a acurácia dos fatos trazidos por Llosa na história. O quão “histórica” há nesta ficção histórica. A contracapa do livro assegura que foi feita uma “pesquisa histórica rigorosa”. Não duvido. E muito aprendi com essa pesquisa. Aprendi sobre os perigos de uma ditadura, sobre a facilidade de ela se instalar e manter (ainda mais quando há apoio dos Estados Unidos e da Igreja, como Trujillo teve por muitos anos) e sobre a dificuldade de ela ser eliminada. Aprendi que não podemos deixar esses líderes loucos que se acham deuses ocuparem cargos de poder, porque não temos garantia nenhuma de que sairão de lá quando devem.

Espero que muito mais pessoas leiam este livro e aprendam tudo isso também, para que a gente vá se resguardando de retornos a passados que deveriam ser extintos para sempre – mas nunca esquecidos.

Este entrou no rol de um dos meus livros favoritos da vida. E certamente um dos mais necessários em qualquer estante do mundo.

A Festa do Bode
Mario Vargas Llosa
Ed. Objetiva
450 págs.
R$ 50,32

 


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Por Cristina Moreno de Castro (kikacastro)

Mineira de Beagá, escritora, jornalista (passagem por Folha de S.Paulo, g1, TV Globo, O Tempo etc), blogueira há mais de 20 anos, amante dos livros, cinéfila, blueseira, atleticana, politizada, otimista, aprendendo desde 2015 a ser a melhor mãe do mundo para o Luiz. Autora dos livros A Vaga é Sua (Publifolha, 2010) e (Con)vivências (edição de autor, 2025). Antirracista e antifascista.

2 comments

  1. Mário Vargas Llosa morreu neste domingo ao 89 anos em Lima, no Peru, cercado pacificamente pela família. Vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 2010. O corpo será cremado, como ele desejava. Mas seus escritos permanecerão por muito tempo, a nos ensinar sobre os malefícios das ditaduras.

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