‘Não me abandone jamais’: uma história surpreendente

Cena do filme 'Não me abandone jamais', de 2010.
Cena do filme 'Não me abandone jamais', de 2010.

Este livro é tão bom, em tantos aspectos, que acho até difícil escrever uma resenha para ele. Porque o negócio é ler e sentir toda a delicadeza do autor.

Mais do que isso: é importante ler sem muito conhecimento prévio, para que você, assim como aconteceu comigo, possa se surpreender a todo momento com a habilidade narrativa do autor Kazuo Ishiguro, Prêmio Nobel de Literatura em 2017.

Já falei dele aqui no blog, ao tentar escrever sobre o impecável “Vestígios do Dia”. Naquele post, também destaquei a habilidade narrativa e a necessidade de sorver a obra com calma. Mas, veja bem: o personagem de então, o mordomo Stevens, que narrava tudo em primeira pessoa, tinha um estilo completamente diferente da narradora-protagonista de agora, a Kathy.

Quão talentoso é um autor que consegue criar vozes praticamente opostas, em todos os sentidos, com tamanha naturalidade?

Kathy tem seu próprio estilo de narrar, que vai puxando pela memória, como uma dona contando um caso do passado mesmo.

A conhecemos já na vida adulta, mas dois terços do livro se passam no passado de Kathy, em sua infância e adolescência. É só na última parte que entendemos quem ela é hoje, onde foi parar. E a história gira basicamente em torno dela e de seus dois melhores amigos: a marcante Ruth e o Tommy, dois personagens bastante interessantes e cheios de personalidade.

A forma de contar a história da narradora Kathy nos prende de uma maneira incrível. Vou dar um exemplo. Na página 69, ela termina uma frase assim: “O que aconteceu depois daquela briga por causa do xadrez ilustra muito bem o que estou querendo dizer.” E a gente não consegue fechar o livro e ir dormir sem saber o que, afinal, aconteceu depois da tal briga.

O mesmo ocorre na página 82, que termina com esta: “Acontece que a oportunidade acabou aparecendo, cerca de um mês depois do episódio com Midge. Foi quando perdi minha fita preferida”. E aí a gente fica querendo saber que oportunidade foi essa e que fita era aquela. E ela não desvenda os mistérios logo de cara, ela começa um novo caso do zero, para você sorver com calma até a próxima parada.

Não sei se deu para entender o ritmo do livro, mas é uma sequência de pequenas lembranças preciosas sendo recordadas, sempre costuradas desta forma, com um breve suspense para o que vem depois. E a gente não quer abrir mão de saber logo o que vai acontecer.

Fora esses micro-suspenses, temos um suspense muito maior, que gira em torno do próprio enredo da história. Logo no início, quando somos apresentados a Kathy, o livro nos introduz aos termos “doadores” e “cuidadores”, que é repetido diversas vezes, mas só vai ser explicado depois da metade da história. Quando Kathy começa a lembrar seu passado, percebemos que ela e as outras crianças vivem em uma espécie de orfanato, mas é um orfanato muito atípico, totalmente diferente de qualquer outro que já tenhamos conhecido na literatura ou no cinema. E logo aparecem outros termos obscuros: a galeria, a madame, os tais guardiões etc.

Tudo é cercado de imenso mistério – tanto para os personagens, que pouco sabem sobre eles próprios, quanto para nós, leitores. É só bem mais perto do fim que ficamos sabendo da história completa, e ela é atordoante o suficiente para nos chocar e nos fazer refletir, ao mesmo tempo.

Até chegar a esta “solução”, passamos por inúmeras histórias sobre amizade, amor e sobre as descobertas próprias de qualquer pessoa em desenvolvimento. Tudo contado pelo ponto de vista de uma personagem crucial, que está longe de ser apenas uma observadora neutra dos fatos.

Enfim, como eu disse no início do post, este livro é tão bom que é até difícil escrever sobre ele. Talvez seja mais fácil você ler logo e a gente poder discutir, depois, já sem medo de estragar todas as surpresas e encantos que estão reservados para os leitores.

Capa do livro 'Não me abandone jamais', de Kazuo IshiguroNão me abandone jamais
Kazuo Ishiguro
Tradução de Beth Vieira
Editora Companhia das Letras, 2018 (2a edição, 4a reimpressão)
343 páginas
R$ 32,60 na Amazon (consulta atualizada em set/2023)

Outros livros de Kazuo Ishiguro:

➡ Quer reproduzir este ou outro conteúdo do meu blog em seu site? Tudo bem!, desde que cite a fonte (texto de Cristina Moreno de Castro, publicado no blog kikacastro.com.br) e coloque um link para o post original, combinado? Se quiser reproduzir o texto em algum livro didático ou outra publicação impressa, por favor, entre em contato para combinar.

➡ Quer receber os novos posts por email? É gratuito! Veja como é simples ASSINAR o blog! Saiba também como ANUNCIAR no blog e como CONTRIBUIR conosco! E, sempre que quiser, ENTRE EM CONTATO 😉

Receba novos posts de graça por emailResponda ao censo do Blog da Kikafaceblogttblog


Descubra mais sobre blog da kikacastro

Assine para receber nossas notícias mais recentes por e-mail.

Avatar de Cristina Moreno de Castro (kikacastro)

Por Cristina Moreno de Castro (kikacastro)

Mineira de Beagá, escritora, jornalista (passagem por Folha de S.Paulo, g1, TV Globo, O Tempo etc), blogueira há mais de 20 anos, amante dos livros, cinéfila, blueseira, atleticana, politizada, otimista, aprendendo desde 2015 a ser a melhor mãe do mundo para o Luiz. Autora dos livros A Vaga é Sua (Publifolha, 2010) e (Con)vivências (edição de autor, 2025). Antirracista e antifascista.

2 comments

Deixe um comentário

Descubra mais sobre blog da kikacastro

Assine agora mesmo para continuar lendo e ter acesso ao arquivo completo.

Continue lendo