‘O advogado rebelde’ de John Grisham e os males da Justiça, lá e cá

Texto escrito por José de Souza Castro:

advogadoJohn Grisham bate duro em “O advogado rebelde”, seu 28º romance ambientado no meio jurídico dos Estados Unidos. Lançado em dezembro de 2015, ocupa desde então listas de mais vendidos em seu país. No Brasil, o livro foi publicado há um mês pela Rocco.

Os leitores da transcrição que faço abaixo, com vários cortes, encontrarão na fictícia Milo uma cidadezinha do interior brasileiro. No réu Gardy e nos policiais e promotores de Justiça, alguém que conhecemos de perto. No crime hediondo do acusado, a mesma sopa que nos é servida aqui, com tempero brasileiro, pela imprensa e pela justiça nossa de cada dia.

Cada uma das 400 páginas desse “thriller” é um convite irresistível à leitura. Dito isso, vamos ao autor – o advogado Sebastian Rudd, o personagem novo e inesquecível de Grisham. É Rudd quem “escreve” o livro, traduzido por Geni Hirata:

“Eles não lhe dizem na Faculdade de Direito que um dia você pode se ver defendendo uma pessoa acusada de um crime tão hediondo que cidadãos normalmente pacatos sentem-se impelidos a pegar em armas e ameaçar matar o acusado, seu advogado e até mesmo o juiz.

Estou sendo pago pelo Estado para prover uma defesa de primeira classe a um réu acusado de homicídio doloso qualificado sujeito à pena de morte, e isso requer que eu lute, esbraveja e faça um escândalo em uma sala de tribunal onde ninguém está ouvindo. Gardy foi basicamente condenado no dia em que foi preso e seu julgamento não passa de uma formalidade. Os policiais burros e desesperados anunciaram as acusações e forjaram as provas. O promotor público sabe disso, mas não tem escrúpulos e está preocupado com sua reeleição no próximo ano. O juiz dorme. Os jurados são no fundo pessoas simples e amáveis, assustadas com o processo e sempre ansiosas para acreditarem nas mentiras que suas arrogantes autoridades fabricam no banco das testemunhas.

O duplo homicídio foi tão horripilante que nenhum advogado local quis tocar no caso. Então, Gardy foi preso, e basta um olhar para saber que ele é culpado. Cabelos compridos pintados de um preto forte e lustroso, uma impressionante coleção de piercings acima do pescoço e de tatuagens abaixo, brincos metálicos combinando, olhos claros e frios, e um risinho afetado que diz: “OK, fui eu mesmo, e daí”? Em sua primeira reportagem, o jornal de Milo descreveu-o como “membro de um culto satânico, com um registro de abuso sexual de crianças”.

Que tal isso para uma reportagem honesta e imparcial? Ele nunca pertenceu a nenhum culto satânico e o caso de assédio sexual de criança não é o que parece. Mas, a partir daquele instante, Gardy foi considerado culpado e eu ainda me admiro com o quanto de termos conseguido chegar aonde chegamos. Há meses que queriam encarcerá-lo.

Ninguém [de Milo] aceitou defender Gardy e, para ser franco, não posso realmente culpá-los. É a cidade deles e a vida deles, e ficar ao lado de um assassino tão perverso poderia causar danos irreparáveis a uma carreira.

Como sociedade, nós nos apegamos na crença em um julgamento justo para uma pessoa acusada de um crime grave, mas alguns de nós resistem quando a questão é fornecer um advogado competente para garantir o dito julgamento justo. Advogados como eu vivem com a pergunta: “Mas como você é capaz de representar essa escória?”

Eu respondo com um rápido “Alguém tem que fazer isso”, enquanto me afasto. Nós realmente queremos julgamentos justos? Não, não queremos. Queremos justiça, e depressa. E justiça é qualquer coisa que consideramos ser em base casuística.

Também podemos dizer que não acreditamos em julgamentos justos porque certamente não os temos. A presunção de inocência agora é presunção de culpa. O ônus da prova é uma farsa porque a prova em geral é construída de mentiras. A culpa para além de qualquer dúvida razoável significa que, se ele provavelmente cometeu o crime, então vamos tirá-lo das ruas.

O Estado não tem nenhuma prova concreta ligando Gardy aos assassinatos. Zero. Assim, em vez de avaliar a falta de provas e reconsiderar o caso, o Estado está fazendo o que sempre faz. Continua plantando provas com mentiras e falsos testemunhos.

Como o Estado não possui provas, é forçado a fabricar algumas.

A decisão deles [os jurados] já foi tomada. Se votarem agora mesmo, antes que apresentássemos uma única testemunha de defesa, eles o considerariam culpado e exigiriam a pena de morte. Depois, voltariam para casa como heróis.”

 

Para não estragar o suspense, paro por aqui.

 

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Por José de Souza Castro

Jornalista mineiro, desde 1972, com passagem – como repórter, redator, editor, chefe de reportagem ou chefe de redação – pelo Jornal do Brasil (16 anos), Estado de Minas (1), O Globo (2), Rádio Alvorada (8) e Hoje em Dia (1). É autor de vários livros e coautor do Blog da Kikacastro, ao lado da filha.

2 comentários

  1. Artigo de Brenno Tardelli, diretor de redação do Justificando, sobre alguns dos males da justiça cá entre nós, personalizados no falecido Teori Zavascki: http://justificando.cartacapital.com.br/2017/01/23/teori-nao-escapou-da-logica-de-supremo-nivelado-por-baixo/?utm_content=buffer379c8&utm_medium=social&utm_source=twitter.com&utm_campaign=buffer

    Trechos

    “Não apenas na ação Teori se mostrou falho, como também na omissão. Foi na sua gaveta que o processo da descriminalização do porte de drogas para consumo dormiu por quase um ano e meio. No começo deste mês, o Justificando o cobrou pela demora no “perdido de vista”, fato que jamais gerou dele qualquer explicação para a sociedade que vive a maior crise carcerária e falência da guerra às drogas das últimas décadas. Cada pessoa usuária de drogas presa e condenada como se traficante fosse nesse tempo de espera tem o direito de cobrar o fechamento desse caso.

    No campo trabalhista, Teori tradicionalmente se posicionou pelo esvaziamento da CLT. Foi um dos que votou pelo corte no ponto de funcionários públicos grevistas, praticamente inviabilizando qualquer paralisação no setor. O julgamento foi um dos mais preocupantes de 2016, pois a corte fez isso sob o argumento de conter eventuais protestos que ocorreriam ante à recessão e o ajuste fiscal. Motivo jurídico algum, apenas político de ser mais governista do que o próprio governo.

    Não se pode esquecer também que Teori decidiu como relator pela prevalência do negociado sobre o legislado em detrimento do trabalhador e da trabalhadora. A decisão veio no fim do ano, quando a corte apontou seus canhões para a CLT, enquanto aplaudia a PEC do Teto de Gastos. Sua Excelência, então, fez coro à ideologia de uma espécie de constitucionalismo individual tão somente, desapegado dos direitos sociais e pouco se importando com o que a Constituição determina – outro grande exemplo é a declaração de ilegalidade da desaposentação pelo Supremo, julgamento no qual Teori compôs a maioria.

    A lembrança desse e de outros episódios não compõem o réquiem de Teori, em função do magistrado ser lembrado como incorruptível e duro com políticos, imagem que soube muito bem construir na sua passagem. (…)

    No sentido absolutamente contrário à dura decisão para o então governo, Teori teve participação protagonista no impeachment de Dilma, ao adiar o julgamento da ação movida pela Procuradoria Geral da República, que pedia o afastamento de Eduardo Cunha da Presidência da Câmara dos Deputados. O ministro preferiu adiar o desfecho processual do parlamentar para que ele definisse antes o destino da chefe do executivo e do país. Frise-se: Eduardo Cunha, unanimidade em termos de falta de ética, só fez o que fez, pois Teori estava nos bastidores, retardando seu afastamento.”

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  2. A ficção pode ser bastante esclarecedora. Bem antes desse livro de John Grisham, Erle Stanley Gardner, que em 1962 foi agraciado com uma placa de prata comemorativa da venda de mais de 100 milhões de exemplares em edições de bolso, escreveu o seguinte em “The case of the black-eyed blond”, lançado em 1944, que provavelmente serviu de inspiração a muitos policiais brasileiros:

    “Bah! – fez Mason [o advogado Perry Mason]. – Eles acham que vão encontrar alguma coisa de prejudicial a Diana [ ou a Lula ] que possam dar aos jornais [ ou à TV Globo, fosse hoje ] Não poderiam fazer com que nada disso fosse admitido como prova, e sabem disso, mas podem dar aos jornais [bons tempos aqueles) e deixar com que os repórteres espalhem a notícia por todos os jornais. Depois, quando a moça [ a Dilma ] for julgada,os jurados [ os deputados e senadores ] vão lembrar-se de tudo que leram nos jornais. É um velho truque da polícia, de acordo com o qual colocam perante o corpo de jurados matéria que possivelmente não poderiam exibir como prova segundo os meios usuais”.

    Pelo visto, o juiz Moro e sua turma da Lava Jato aprenderam mais com Perry Mason do que com aqueles maçantes livros de Direito.

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