
Desci outro dia as escadas do prédio e meu coração ficou apertado ao vê-lo ali, totalmente abandonado, sobre a caixa de correios, ao lado do portão.
Fazia tempo que eu não me lembrava de sua existência. E, ao vê-lo, depois de tantos anos sem pensar a seu respeito, me dei conta do peso da inutilidade que anda recaindo furiosamente sobre as coisas obsoletas.
Lembrei de como ele era disputado há nem tantos anos. De como todo mundo queria ter um em casa. E o colocava em local de fácil acesso, para ser consultado sempre que se queria encontrar o telefone de um parente meio sumido ou achar o borracheiro mais próximo.
Na era dos smartphones, os catálogos pereceram, por ser muito mais ágil encontrar serviços — e seus contatos — pela internet e por ser melhor registrar os telefones de pessoas conhecidas na memória do próprio telefone. O catálogo já ficou obsoleto desde o surgimento das listas online, como a excepcional Telelistas.net, que era meus braços direito e esquerdo nos tempos de repórter. Cheguei a fazer uma matéria inteira, quando Miraí foi devastada pelo rompimento de uma barragem, em 2007, apenas consultando ao Telelistas, que me permitiu sair ligando para moradores, escolhidos a dedo pelos bairros mais atingidos, para ouvir deles como foi o desastre.
Assim como os catálogos, as próprias agendas de papel estão perdendo espaço. Ninguém as usa mais para anotar contatos. Os que as mantêm, são geralmente para transformá-las em um diário. Até nos consultórios elas foram trocadas pelos computadores.
E ontem li que um site colocou o despertador, o aparelho de DVD e o controle remoto de TV como brevemente futuras peças de museu. Há tempos já coloquei nessa lista o telefone fixo.
Às vezes acho que o mundo corre rápido demais e vai empoeirando, sem dó nem piedade, coisas que mereciam mais respeito. Apesar de usar essa nova tecnologia, ainda reverencio seus antepassados. Todo fim de semana, uma das maiores diversões aqui em casa é alternar LPs no nosso toca-discos, enquanto descansamos e tomamos uma cervejinha. Com os CDs já ultrapassados pelos MP3s, ainda não encontrei som mais puro que o do vinil.
Estou pensando em pegar agora mesmo aquele catálogo, sobre a caixa do correio, e reservar um pequeno pedestal para ele, ao lado do telefone fixo. Mas antes preciso arrumar um telefone fixo…
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Tecnologia
Para começar, ele nos olha nos olha na cara. Não é como a máquina de escrever, que a gente olha de cima, com superioridade. Com ele é olho no olho ou tela no olho. Ele nos desafia. Parece estar dizendo: vamos lá, seu desprezível pré-eletrônico, mostre o que você sabe fazer. A máquina de escrever faz tudo que você manda, mesmo que seja a tapa. Com o computador é diferente. Você faz tudo que ele manda. Ou precisa fazer tudo ao modo dele, senão ele não aceita. Simplesmente ignora você. Mas se apenas ignorasse ainda seria suportável. Ele responde. Repreende. Corrige. Uma tela vazia, muda, nenhuma reação aos nossos comandos digitais, tudo bem. Quer dizer, você se sente como aquele cara que cantou a secretária eletrônica. É um vexame privado. Mas quando você o manda fazer alguma coisa, mas manda errado, ele diz “Errado”. Não diz “Burro”, mas está implícito. É pior, muito pior. Às vezes, quando a gente erra, ele faz “bip”. Assim, para todo mundo ouvir. Comecei a usar o computador na redação do jornal e volta e meia errava. E lá vinha ele: “Bip!” “Olha aqui, pessoal: ele errou.” “O burro errou!”
Outra coisa: ele é mais inteligente que você. Sabe muito mais coisa e não tem nenhum pudor em dizer que sabe. Esse negócio de que qualquer máquina só é tão inteligente quanto quem a usa não vale com ele. Está subentendido, nas suas relações com o computador, que você jamais aproveitará metade das coisas que ele tem para oferecer. Que ele só desenvolverá todo o seu potencial quando outro igual a ele o estiver programando. A máquina de escrever podia ter recursos que você nunca usaria, mas não tinha a mesma empáfia, o mesmo ar de quem só agüentava os humanos por falta de coisa melhor, no momento. E a máquina, mesmo nos seus instantes de maior impaciência conosco, jamais faria “bip” em público.
Dito isto, é preciso dizer também que quem provou pela primeira vez suas letrinhas dificilmente voltará à máquina de escrever sem a sensação de que está desembarcando de uma Mercedes e voltando à carroça. Está certo, jamais teremos com ele a mesma confortável cumplicidade que tínhamos com a velha máquina. É outro tipo de relacionamento, mais formal e exigente. Mas é fascinante. Agora compreendo o entusiasmo de gente como Millôr Fernandes e Fernando Sabino, que dividem a sua vida profissional em antes dele e depois dele. Sinto falta do papel e da fiel Bic, sempre pronta a inserir entre uma linha e outra a palavra que faltou na hora, e que nele foi substituída por um botão, que, além de mais rápido, jamais nos sujará os dedos, mas acho que estou sucumbindo. Sei que nunca seremos íntimos, mesmo porque ele não ia querer se rebaixar a ser meu amigo, mas retiro tudo o que pensei sobre ele. Claro que você pode concluir que eu só estou querendo agradá-lo, precavidamente, mas juro que é sincero.
Quando saí da redação do jornal depois de usar o computador pela primeira vez, cheguei em casa e bati na minha máquina. Sabendo que ela agüentaria sem reclamar, como sempre, a pobrezinha.
Luis Fernando Veríssimo
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Lembro-me que a edição de catálogos telefônicos era um grande negócio. Em certo momento, pareceu a salvação da lavoura para o “Estadão”, quando o grupo dos Mesquitas ganhou a concessão para publicar os catálogos da Telebras. A estatal soçobrou primeiro que o jornal.
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