O caso do misterioso ladrão de casaco

Guardem bem esta personagem: vou chamá-la de Maritaca. A viagem de ônibus começou às 23h30, saindo de São Paulo para Beagá, e a primeira coisa que ela fez foi pegar o celular e fazer uma ligação para uma moça chamada de Lu. As luzes apagadas, todos concentrados em dormir, no mais absoluto silêncio, e Maritaca entabula uma conversa entremeada de gargalhadas altíssimas, como as das bruxas de desenhos animados, alugando a orelha da pobre Lu e de todos nós, seres insones. Diz para Lu dormir, porque ela tem a voz cansada, mas não termina nunca a conversa: a cada “beijo, tchau” segue uma nova lembrança de futilidade a ser dita, até que o papo só termine efetivamente no 34º “beijo, tchau”, à meia-noite.

Muito bem, guardem bem esta personagem, ela será importante para nossas investigações. Está sentada na poltrona diagonal à minha, atrás do segundo personagem.

O segundo personagem é um rapaz, por volta de seus 25 anos. Ele deixa o celular cair no corredor no primeiro minuto de viagem. Eu, sentada na poltrona ao lado dele, mas do outro lado do corredor, chamo: “Moço! Moço!” e sou ignorada. Resignada, me abaixo, pego o celular, e entrego, toda gentil. Ele agradece sem nem olhar. Vamos chamá-lo de Rabugento.

A terceira personagem estava sentada na poltrona em frente à minha – portanto, na diagonal do Rabugento. Ela se conserva calada na maior parte do tempo, mas depois da segunda parada, em Perdões, dispara a tagarelar com outra senhora à sua frente. Assim fico sabendo que ela tem 75 anos, perdeu a visão por causa de uma diabetes não tratada, que foi trabalhar no hospital São Miguel, no centro cirúrgico, como sempre, saiu de casa às 7h, enxergando, e às 10h (ou seria às 22h?), já não via mais nada. Fizeram uma cirurgia nela, mas já era tarde: os nervos oculares tinham se rompido. E hoje ela só enxerga vultos. Fico em dúvida se devo batizá-la de Tagarela ou de Vítima, como logo verão por quê.

Eis que, na tal segunda parada, em Perdões, resolvo descer do ônibus pra fazer xixi. Assim que ele para, vejo um casaco imenso no meio do corredor (onde antes caíra o celular de Rabugento). Eu já ia me levantar para pegar, mas Maritaca passa antes, pega o dito-cujo, e o coloca na poltrona ao lado da de Rabugento, pensando ser dele a jaqueta. E desce.

Logo em seguida, desço também, não sem antes ser chamada por Rabugento para perguntar se o tal casaco é meu. Donde se conclui que não era dele. Digo que não e desço, rabugentamente. Enquanto isso, Tagarela dorme.

Quando volto do meu xixi, encontro Tagarela na maior tagarelice com a outra senhora à sua frente. É aí que ouço toda a sua história da perda da visão e tudo o mais. Quando percebo que ela só ia terminar o assunto em Belo Horizonte, junto minhas tralhas e vou para os fundos do ônibus, tentar um sossego, longe de maritacas e tagarelas, para finalmente dormir.

Acordo às 7h30, com um bocejo de um sujeito perto de mim, e resolvo voltar ao meu lugar de origem. Lá, encontro Tagarela inconformada, mais para Vítima, procurando inutilmente seu casaco “novinho, nunca usado, chique, caro”. Maritaca está sentada no lugar de Rabugento, que tinha descido uns 15 minutos antes, em Betim. A outra senhora ajuda Vítima em sua busca, já que ela não pode enxergar.

É quando me intrometo: “Vocês estão procurando por um casaco?”

“Sim”

“Eu vi um casaco caído no meio do corredor, e ela (apontando para Maritaca) o pegou, colocou no lugar onde está sentada agora, onde havia um rapaz.”

Só nesse momento é que Maritaca resolve contar a história, o que me parece muito suspeito. Joga a culpa para Rabugento: “Ele saiu há 15 minutos, deve ter levado com ele…”

Tagarela, ou Vítima, inconformada, diz que vai pedir ao motorista para revistar as pessoas. Nessa hora, chegamos à parada de Contagem e Maritaca, que não tinha dado mostras de que ia descer, resolve ficar por ali mesmo. Sai.

Se eu fosse a detetive particular desta história, faria a seguinte lista:

1. Suspeita número 1: Maritaca. Ao perceber que Rabugento saíra sem levar o casaco, e ao ver que eu não estava por perto e não havia outras testemunhas oculares de seu crime, sorrateiramente colocou o agasalho “chique” em sua malinha de mão e fingiu de morta até que eu tocasse no assunto. Com medo da revista, decidiu descer em Contagem mesmo.

2. Suspeito número 2: Rabugento. Teve oportunidade, porque foi o primeiro a descer, e só eu sabia que o casaco não era dele, mas eu estava lá nos fundos, e nunca veria.

3. Suspeito número 3: qualquer um dos demais passageiros, que tiveram oportunidade de pegar no meio da madrugada, como sempre se tem, mas com riscos muito maiores.

O problema é que não sou detetive particular. Sou apenas uma testemunha relapsa que, vencida pelo sono, perdi a oportunidade de flagrar o meliante no ato e fazer com que Vítima fosse apenas Tagarela.

Por Cristina Moreno de Castro (kikacastro)

Mineira de Beagá, jornalista (passagem por Folha de S.Paulo, g1 e TV Globo, UOL, O Tempo etc), blogueira há 20 anos, amante dos livros, poeta, cinéfila, blueseira, atleticana, politizada, otimista, aprendendo desde 2015 a ser a melhor mãe do mundo para o Luiz. Antirracista e antifascista.

8 comentários

  1. O enredo é impressionante. Deu uma bela história, como você contou, mas o que mais me impressiona é a falta de educação do povo, não respeitar o descanso e sono alheio; furto é comum, premeditado ou de esbarrão com a res furtiva, como me parece ter sido o caso.
    Mas, o mais impressionante de tudo isso, é constatar que suas viagens nesse trajeto, nunca são tranquilas como deveriam ser, e como rezo para que sejam . Sempre tem um incidente de percurso. Oh vida!
    Abraços, Cristina.

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