Bolaños (1929-2014): perdi um amigo de infância e um herói

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Fui pega de surpresa com a morte de Roberto Gómez Bolaños, o Chaves. Claro, eu sabia que ele já estava velhinho e tinha estado internado recentemente, muito doente. Mas foi um susto ver a carinha do Chaves, dentro de seu barril, no topo de todos os sites de notícia, com o anúncio de sua morte.

Sem nem perceber como, me vi chorando de soluçar. Acho que senti como se tivesse perdido um amigo de infância. E foi bem isso mesmo: Chaves começou a ser exibido pelo SBT no Brasil um ano antes de eu nascer. E, desde que tenho memória, me recordo de assistir ao seriado.

Com o Chaves aprendi alguns conceitos importantes, que carrego comigo até hoje. Por exemplo, aprendi que as mulheres podem ser bem mais fortes, em todos os sentidos, que os homens. Dona Florinda era uma mãe que criava o filho sozinha, trabalhava com mil coisas (já vendeu churros e, empreendedora, chegou a abrir um restaurante) e não deixava barato quando se sentia ameaçada por um homem (principalmente o Seu Madruga, mas não só ele). E a Chiquinha era a menina esperta, astuta, inteligente, que bolava os planos e conseguia sempre o que queria, inclusive bilhetes premiados para que ela e o pai fossem passar as férias dos sonhos em paradisíaco Acapulco 😉

Também aprendi o conceito de justiça, por exemplo. Alguém se lembra do episódio em que todos acusam o Chaves de ser um ladrão? Ofendido, ele deixa a vila com sua trouxinha. Toda vez que assisto a este episódio, eu choro com a gravidade da injustiça escancarada. Mas também é com o Chaves que a gente aprende a perdoar e que “a vingança nunca é plena, mata a alma e a envenena“.

Aprendemos também com o Seu Barriga, o mais rico da história, mas extremamente generoso, inclusive capaz de perdoar 14 meses de aluguel. E com o anti-herói que é Seu Madruga – malandro, preguiçoso (embora ele também trabalhe feito um condenado em várias cenas), que distribui cascudos nas crianças, fuma adoidado (vale ressaltar que foi o cigarro que levou Bolaños e o próprio Ramón Valdés…), mas que também tem um coração imenso (“as pessoas boas devem amar seus inimigos”, olha que lindo!).

Com Chaves, aprendi desde criança sobre meninos de rua, sobre crise, desemprego, sobre a disparidade dos garotos que têm sempre acesso ao sanduíche de presunto e aos brinquedos mais caros (Quico e Nhonho) e os que não possuem nada, sobre a inveja que isso causa, sobre vizinhos que se acham superiores aos outros (“gentalhas”), mesmo morando numa mesma vila, lado a lado.

Também foi minha primeira experiência de presenciar um grande amor. Era palpitante ouvir aquela música toda vez que Dona Florinda e Professor Girafales se encontravam, e ouvir a voz adocicada que usavam nos cumprimentos de praxe, além de serem mágicas aquelas cenas em que eles só se olhavam, mudos, alheios ao mundo ao redor, sem piscar, apenas se admirando, apaixonados. Por outro lado, também havia o lado cruel do eterno namorado que não queria assumir um compromisso. Uma dose de vida real para desmistificar esse amor de cinema.

Ainda foi com Chaves que aprendi a amar o México e todas as coisas incríveis que conheci sobre a cultura daquele país por meio da telinha: como são deliciosos os churros, como é emocionante o Dia de São Valentín, como Acapulco é um lugar dos sonhos etc.

Chaves tinha abordagens que hoje seriam consideradas politicamente incorretas, talvez até tabus. Cenas de bullying, de trabalho infantil, de violência contra crianças, dentre outros. O que só ressalta como talvez estejamos criando um mundo excessivamente quadrado e chato, já que milhares de crianças do planeta inteiro assistiram ao Chaves e não por isso se tornaram delinquentes ou exploradores. O politicamente incorreto pode mesmo ser engraçado – demonstrava sempre o Bolaños –, embora ele nunca tenha recorrido a mulheres peladas ou cenas apelativas como faziam nossos Trapalhões.

Chaves me ensinou, sobretudo, a rir. Inclusive a rir das desgraças próprias e alheias. Já perdi a conta de quantas vezes assisti a cada episódio e, no entanto, quase sempre ria das ideias geniais de Bolaños, muitas vezes mais para o discernimento de adultos que de crianças. E como o cara conseguia, do alto de seus 42 anos (quando o primeiro episódio foi ao ar, em 1971), incorporar tão bem um garoto de 8?! Sempre me espantei com a capacidade que ele e os outros atores tinham de fazer o mundo inteiro enxergá-los com uma lente mágica que os transformava realmente em crianças. Em nenhum momento passava pela minha cabeça que Chaves, Chiquinha, Quico, Nhonho, Godines, Paty, Pópis e outros fossem adultos. Bolaños nos fazia esquecer disso e embarcar na fantasia, como ninguém. (♫ ♫ ♫ “Que bonita a sua roupa… Que roupinha muito louca…!” ♪♫♪ )

Por tudo isso, para mim, ele era um gênio. Mais gênio que o Charles Chaplin, com a vantagem de ser latino, quase brasileiro. Ele nos deixa um legado imenso de personagens incríveis, como Chaves, Chapolin, Chespirito e Doutor Chapatin – além de todos os outros que ele criou em sua cabeça mirabolante e levou para a TV na pele de outros atores incríveis (“quero evitar a fadiga…”, que bordões sensacionais!). E conquistou milhões de fãs ao redor do planeta. (Parêntesis para agradecer infinitamente ao Silvio Santos por ter trazido ele até nós, em primeiro lugar).

Fiquei triste de verdade com a perda desse amigo íntimo. Esse velhinho de 85 anos que eu enxergava como uma eterna criança (e que me estimula até hoje a conservar minha alma de criança dentro de mim). O que me consola é que tenho todos os episódios de Chaves e de Chapolin e, sempre que me bater a saudade, vou lá assisti-los de novo. E vou apresentar esse gênio Chespirito para meus futuros filhos, netos e bisnetos, para ajudar a eternizar o pequeno herói que vivia num barril e o outro, que carregava uma marreta biônica – muito mais importantes para mim que qualquer aranha, morcego ou E.T. que exista por aí.

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Por Cristina Moreno de Castro (kikacastro)

Mineira de Beagá, jornalista (passagem por Folha de S.Paulo, g1 e TV Globo, UOL, O Tempo etc), blogueira há 20 anos, amante dos livros, poeta, cinéfila, blueseira, atleticana, politizada, otimista, aprendendo desde 2015 a ser a melhor mãe do mundo para o Luiz. Antirracista e antifascista.

6 comentários

  1. Que lindo texto. Bem lembrado, de agradecer ao Silvio Santos por ter nos dado a oportunidade de conhecer o mundo de Chespirito!

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