
O post de ontem me inspirou a escrever a crônica ficcional abaixo, dando uma de Moacyr Scliar bem menos talentosa.
Reforço que a história de Brenda foi só inspiração, mas o texto abaixo é totalmente fictício, um exercício de imaginação, sem qualquer julgamento de valor sobre figuras reais.
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O moleque fugiu.
E agora? Moleque pequeno, com bochechas gordas rosadas, olhinhos de cachorro faminto, sempre ajuda a convencer os ricaços a liberar o dinheiro.
E eu gostava do moleque. Conversava com ele, ensinava as coisas da vida. Deixei ele bicar minha cachaça quando fez 9 anos. Como eu bicava a espuminha da cerveja do meu velho.
Catava os piolhos, dava um jeito de deixar ele sempre limpo, sem doença. E era livre, livre, como passarinho, como eu sou, dono da rua.
E tinha lá os amiguinhos dele, nunca proibi. Tinha o totó. E minha proteção, porque sei melhor que ninguém como lidar com os canalhas da polícia, os canalhas da prefeitura e aqueles jatos d’água fria infernais.
Mas moleque fugiu. Vou sentir falta dele.
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A pirralha não para de chorar.
Me lembra o moleque, quando o encontrei, perdido na rua.
Ela também estava perdida, toda aquela multidão gritando, aquela confusão, não se leva bebê pra um lugar daqueles.
Nem precisei correr. Sorri pra pirralha, ofereci a mão, e ela veio. As bochechas ainda mais rosadas que as do moleque. Linda mesmo.
Será uma boa filha.
Só esse chororô que tem que parar. Deve ser a roupinha que moleque usava, deve ter pegado piolho velho.
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Duas semanas com pirralhinha e eu já gosto dela. Acho até que ela também gosta de mim, porque não chora tanto. Peguei uma coberta nova das carolas só pra ela, limpinha. Vai aprender a virar passarinha. Vai pedir dinheiro, vai pagar a cachaça, vai ser livre como o velho dela.
Sem multidão gritando pra ela. Que deus não mora nas ruas.
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Imbecil! O que aquele garoto pensa que é? Criei ele como meu filho, aquele órfão lazarento. Pensa que não reconheci? Me viu de longe, a pirralha com o dedinho estendido, sociável como só ela, e veio tirar satisfação.
“Esta não. Ela é minha vizinha. A mãe dela está desesperada!”, posso ouvir as palavras, ver a mão segurando firme o bracinho dela.
“Que sabe de mim hoje, garoto? Essa é minha filha, você tá confundindo.”
“Não esqueço tua cara, velho. Não vai ficar pegando filha dos outros, vou te denunciar.”
“Que denunciar o quê, garoto? Bandeou pro lado dos canalhas? O que te ensinei? Eu não roubo criança, você sabe disso. Pego só os órfãozinhos, como você.”
“Essa não é órfã, ela tem família. Machucou ela?”
“Está doido, rapaz? Alguma vez encostei o dedo em você? Devia ter encostado, pra ficar mais agradecido.”
“Não vai explorar essa criança, velho. Vou chamar a polícia. Eu conheço a mãe dela, a foto dela tá na cidade toda. Corre agora, senão vou ficar com ela e ainda te botar na cadeia.”
Corri. Deixa a bichinha com a família dela, naquelas grades em que o garoto se meteu, cumpridor de ordens. Não aprendeu nada mesmo. É um imbecil ingrato, isso sim. Seis anos na minha asa e agora vindo me ameaçar.
Vou voar, vou sumir, que passarinho perdido é o que não falta, pra eu ajudar a libertar.
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