Uma terra de índios (mais relatos de um caminhoneiro)

Foto: Barra do Corda Notícia

Já contei para vocês alguns relatos de um motorista do jornal que trabalhou boa parte da vida como caminhoneiro. Fiquei vários meses sem encontrá-lo, mas nesta semana tive oportunidade de ir para a pauta com ele duas vezes, e pude ouvir ainda mais boas histórias.

Uma delas segue no post de hoje, também tirada de memória:

“Certa vez, em meados dos anos 90, quando eu estava fazendo muitas entregas no Maranhão, passei por uma rodovia que é conhecida como “rodovia dos índios”, mas eu não sabia por que tinha esse nome.

É a BR-226. O trecho que tem esse nome vai de Teresina, no Piauí, e segue até Porto Franco, no Maranhão, passando por Grajaú.

São 370 km nesse trecho e contei nada menos que 77 lombadas!

Quando cheguei ao meu destino, perguntei ao despachante da mercadoria porque havia tantas lombadas num trecho tão pequeno. Ele respondeu:

— Você viu algum posto de gasolina ou lanchonete no caminho?

— Não.

— Algum povoado?

— Não, só vi alguns índios.

— Pois é. Esta é a rodovia dos índios. Só tem índios no caminho. Eles colocaram as lombadas porque queriam cobrar pedágios, mas não conseguiram. Então eles aproveitam que os caminhões reduzem a velocidade nas lombadas e assaltam os caminhoneiros. Não adianta tentar acelerar, que outro grupo pega na lombada seguinte. Já chegam com armas na cara do motorista.

— Mas ninguém me assaltou.

— Eles têm uma “logística”. Até as 14h, colocaram as índias para vender produtos na beira da estrada. Das 14h em diante, ninguém mais passa por lá, porque é quando começam os assaltos. Certa vez, um caminhoneiro desavisado passou por ali no final da tarde. Estava com a esposa e uma filha de 14 anos. Quando chegou na lombada, um grupo ameaçou os três com armas, e eles desceram. Amarraram o homem e estupraram a mulher e a adolescente. Depois levaram toda a mercadoria do caminhão e liberaram os três para seguir viagem. O caminhoneiro parou na cidade mais próxima para que as duas moças fossem medicadas, porque elas também levaram uma surra. Depois comprou uma espingarda, várias munições, voltou para o local do crime e matou toda a população daquela tribo. Até hoje não se vê ninguém naquele pedaço da rodovia.

***

Depois de um tempo, tive que voltar ao Piauí e fiquei assombrado com outra realidade. Parei num posto de gasolina chegando a Teresina para tomar banho e comer. No local, cerca de 50 meninas, entre 9 e 14 anos de idade. Elas vieram me procurar, pedindo dinheiro. Eu disse que daria R$ 1 só depois de poder tomar banho. Me mostraram onde era. Quando saí do banho, uma delas, a menorzinha, que parecia ter 9 anos, me ofereceu um programa.

— O quê???? Você está doida? Você é uma criança!

— Todas que estão aqui fazem programa, moço.

Foi só aí que percebi que todas aquelas 50 meninas estavam, na verdade, se oferecendo para os caminhoneiros que paravam.”

***

A cada história dessas que ouço, maior minha percepção de que o Brasil é uma terra inexplorada e irregular, um poço de histórias erradas ainda não contadas , talvez à espera de um jornalista corajoso e de uma publicação que dê voz a ele…


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Por Cristina Moreno de Castro (kikacastro)

Mineira de Beagá, escritora, jornalista (passagem por Folha de S.Paulo, g1, TV Globo, O Tempo etc), blogueira há mais de 20 anos, amante dos livros, cinéfila, blueseira, atleticana, politizada, otimista, aprendendo desde 2015 a ser a melhor mãe do mundo para o Luiz. Autora dos livros A Vaga é Sua (Publifolha, 2010) e (Con)vivências (edição de autor, 2025). Antirracista e antifascista.

5 comments

  1. É verdade, Cris. O interior deste país grande e bobo, como já foi chamado, é um repositório de histórias inéditas desconhecidas pelo público dos grandes jornais. Com o fim das sucursais, que não resistiram à crise dos anos 80 e dos anos Collor e Itamar, os grandes jornais do eixo Rio-São Paulo acabaram limitando seu espaço de cobertura, com raras escapadas a regiões mais distantes que hoje quase só os caminhoneiros muito rodados conhecem. Bom, quando são contadores de história, como esse aí. Conhecer tais regiões passou a ser uma tarefa dos grandes romancistas, como Guimarães Rosa, que deu a conhecer o grande sertão mineiro reinventando a realidade e as palavras.

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      1. Sem dúvida. Estamos carentes na atualidade de grandes romancistas brasileiros. Aqueles que fazem diferença na história.

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  2. Essa história da “rodovia dos índios” é de causar arrepios.

    Ao terminar a leitura dessas histórias, pensei mais ou menos o que seu pai comentou, Cris. É como se “tudo o que acontece” ficasse restrito apenas ao eixo Rio-SP ou alguma outra capital – e sobre estas capitais, digamos, do Norte, Nordeste e Centro-Oeste, o noticiário resume-se à previsão do tempo, festividades ou quando acontece algo realmente chocante como atos de violência que pensávamos existirem apenas em contos de terror.

    E tem muita coisa mesmo acontecendo nos “rincões” do Brasil. Quando eu tinha 18 anos fiz uma viagem “na doida” com um pessoal saindo de São Paulo para a Bahia ( Salvador) de carro, pegando a BR-116 também conhecida como Rio-BA. Chegamos a uma cidadezinha chamada Milagres, já no sertão baiano, e havia muitas crianças na pista tapando buracos e pedindo “qualquer coisa”. Uma amiga que estava no carro conosco deu um pacotinho de biscoitos e umas 10 crianças, de várias idades, atacaram o pacote com uma voracidade que logo sobraram apenas farelos – e os menores lambiam o chão quente para não “perderem nada”. Mais adiante paramos em um posto de combustível para abastecer e havia muitas crianças lá também – na maioria, meninas. Uma dessas meninas, que eu julguei ter uns 10 anos, se muito, me pediu “um dinheiro”. Disse que no momento eu não tinha e então ouvi da menina: “Quando o senhor tiver, me procura, fico aqui o dia todo”. Aí me disseram, mas eu já entendi, que aquelas meninas ( e alguns meninos) faziam programas.

    Nunca mais voltei lá pra saber se as coisas melhoraram. Talvez um dia eu faça isso.

    E todo o apoio para você escrever um romance! 😉

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    1. A coisa é feia e nem precisa ir muito longe. Já vi criancinha andando de galocha em rua de lama aqui na periferia de São Paulo pedindo trocado para indicar o melhor lugar para o carro passar sem atolar… E estou falando da “maior cidade do Brasil”, para onde todos os holofotes estão voltados…

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