Quando até discurso é bom de ler

gabo

A Ana Paula, de quem tanto já falei por aqui, me emprestou o livro acima com bastante propaganda. “É muito legal!”. E disparou a contar uma história sensacional que é contada logo no começo do livro, que depois reli como se tivesse sabendo dela pela primeira vez, de tão genial. Gabriel García Márquez é genial e fazia tempo que eu não me lembrava disso (o último dele que li foi “Memórias de minhas putas tristes”, em 2006!!).

O livro em questão, “Eu não vim fazer um discurso”, reúne 21 discursos que Gabo fez entre 1944 e 2007. Da despedida do colegial à comemoração de seus 80 anos e 40 anos de publicação da obra prima “Cem Anos de Solidão”. Passando pelo prêmio Nobel, por conferências com grandes líderes e intelectuais do mundo e por homenagens a amigos, os discursos tratam das agruras da América Latina, do ofício apaixonante de jornalista, da literatura e de figuras públicas, mais ou menos conhecidas.

Pincelo alguns trechos incríveis do livro:

“Em cada linha que escrevo trato sempre, com maior ou menor fortuna, de invocar os espíritos esquivos da poesia, e trato de deixar em cada palavra o testemunho de minha devoção pelas suas virtudes de adivinhação e pela sua permanente vitória sobre os surdos poderes da morte.” (1982)

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“Em algum momento do próximo milênio a genética vislumbrará a eternidade da vida humana como uma realidade possível, a inteligência eletrônica sonhará com a aventura quimérica de escrever uma nova Ilíada, e em sua casa na Lua haverá um casal de apaixonados de Ohio ou da Ucrânia, angustiados de nostalgia, que se amarão em jardins de vidro à luz da Terra. A América Latina e o Caribe, porém, perecem condenados à servidão do presente: o caos telúrico, os cataclismos políticos e sociais, as urgências imediatas da vida diária, das dependências de toda índole, da pobreza e da injustiça, não nos deixaram muito tempo para assimilar as lições do passado nem pensar no futuro.” (1985)

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“Um minuto depois da última explosão, mais da metade dos seres humanos terá morrido, o pó e a fumaça dos continentes em chamas derrotarão a luz solar, e as trevas absolutas voltarão a reinar no mundo. Um inverno de chuvas alaranjadas e furacões gelados inverterá o tempo dos oceanos e dará volta no curso dos rios, cujos peixes terão morrido de sede nas águas ardentes, e cujos pássaros não encontrarão o céu. As neves perpétuas cobrirão o deserto do Saara, a vasta Amazônia desaparecerá da face do planeta destruída pelo granizo, e a era do rock e dos corações transplantados estará de regresso à sua infância glacial. Os poucos seres humano que sobrevivam ao espanto, e os que tiverem o privilégio de um refúgio seguro às três da tarde da segunda-feira aziaga da catástrofe magna, só terão salvado a vida para depois morrer pelo horror de suas recordações. A criação haverá terminado. No caos final da umidade e das noites eternas, o único vestígio do que foi a vida serão as baratas.” (forte discurso contra as 50 mil ogivas nucleares engatilhadas pelo mundo, feito em 1986)

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“Pois o jornalismo é uma paixão insaciável, que só se consegue digerir e humanizar pela sua confrontação descarnada com a realidade. Ninguém que não a tenha padecido consegue imaginar essa servidão que se alimenta das imprevisões da vida. Ninguém que não tenha vivido isso consegue nem de longe conceber o que é o palpitar sobrenatural da notícia, o orgasmo da nota exclusiva, a demolição moral do fracasso. Ninguém que não tenha nascido para isso e esteja disposto a morrer por isso poderia persistir num ofício tão incompreensível e voraz, cuja obra termina depois de cada notícia (…).” (1996)

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“Aos meus doze anos, estive a ponto de ser atropelado por uma bicicleta. Um padre que passava me salvou com um grito: ‘Cuidado!’ O ciclista caiu no chão. O senhor padre, sem se deter, me disse: ‘Viu só o que é o poder da palavra?'” (1997)

Mas o trecho mais legal, aquele que citei de cara neste post, vou deixar para publicar aqui amanhã, porque domingo é dia do bom e do melhor 😉

De qualquer forma, adianto: quem gosta de literatura, de história e de jornalismo, de refletir sobre a palavra e de sorver textos tão maravilhosamente bem escritos, tem que dar um jeito de ler este livro.

Eu não vim fazer um discurso
Gabriel García Márquez
Editora Record
127 páginas
De R$ 16 a R$ 28

Leia também os seguintes posts sobre discursos:

 

Por Cristina Moreno de Castro (kikacastro)

Mineira de Beagá, jornalista (passagem por Folha de S.Paulo, g1 e TV Globo, UOL, O Tempo etc), blogueira há 20 anos, amante dos livros, poeta, cinéfila, blueseira, atleticana, politizada, otimista, aprendendo desde 2015 a ser a melhor mãe do mundo para o Luiz. Antirracista e antifascista.

4 comentários

  1. Cris, há alguns discursos marcantes. E não deve ser tão difícil lê-los, reunidos em livros. O jornalista Carlos Figueiredo, que é também contista, poeta e tradutor, e que foi secretário da Participação e Descentralização do Estado de São Paulo, no governo Franco Montoro, tem, entre seus livros, o “100 Discursos Históricos”, publicado pela Editora Leitura em 2002. O exemplar que me foi dado em dezembro do ano passado pelo jornalista José Silvestre Gorgulho, meu colega de faculdade e fundador do jornal “Folha do Meio Ambiente”, já está na quarta edição. Entre os discursos selecionados pelo Figueiredo, não se encontram nenhum de Gabriel Garcia Márquez. Eles devem ser muitos bons, a julgar pelos trechos que você selecionou. Mas há discursos de Sócrates, Cícero, Santo Agostinho, Lutero, Padre Vieira, Robespierre, Bolívar, Lincoln, Karl Marx, Joaquim Nabuco, Gandhi, Churchill, Getúlio Vargas, JK, Orlando Villas Boas, Kennedy, Mandela, Luther King, Fidel Castro, Betinho e muitos outros. Não se perde tempo, lendo nenhum deles.

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