Leia na íntegra o voto sobre o aborto no Brasil que Luís Roberto Barroso proferiu em seu último dia como ministro do STF
- Texto escrito por Cristina Moreno de Castro
Quando a então ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Rosa Weber se aposentou, escrevi aqui no blog sobre o voto dela, de 129 páginas, pela descriminalização do aborto no Brasil. Na época, o voto foi elogiado como “seu maior legado intelectual”, passando a “integrar o cânone global sobre o tema”.
Dois anos depois, o colega Luís Roberto Barroso, em seu último dia como membro do STF, também decidiu registrar seu voto pela descriminalização da interrupção voluntária da gravidez nas 12 primeiras semanas de gestação.
Bem mais sucinto, ele se posicionou por meio de 9 tópicos, em pouco mais de duas páginas. Reproduzo esse segundo voto aqui no blog, por também se tratar de um posicionamento histórico. Os grifos são meus:
“VOTO
O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO:
Acompanho o voto da Relatora [Rosa Weber], por seus bem lançados fundamentos. Minha posição na matéria é conhecida e já a manifestei ao julgar o Habeas Corpus nº 124.306, bem como em artigos doutrinários. Sintetizo aqui, em linguagem simples e objetiva, minha visão e sentimento sobre o tema.
1.
Ninguém é a favor do aborto em si. O papel do Estado e da sociedade é o de evitar que ele aconteça, dando educação sexual, distribuindo contraceptivos e amparando a mulher que deseje ter o filho e esteja em circunstâncias adversas. Deixo isso bem claro para quem queira, em boa-fé, entender do que se trata verdadeiramente.
2.
A discussão real não está em ser contra ou a favor do aborto. É definir se a mulher que passa por esse infortúnio deve ser presa. Vale dizer: se o Estado deve ter o poder de mandar a Polícia, o Ministério Público ou o juiz obrigar uma mulher a ter o filho que ela não quer ou não pode ter, por motivos que só ela deve decidir. E, se ela não concordar, mandá-la para o sistema prisional.
3.
A interrupção da gestação deve ser tratada como uma questão de saúde pública, não de direito penal.
4.
Pesquisas endossadas pela Organização Mundial da Saúde documentam que a criminalização não diminui o número de abortos, mas apenas impede que ele seja feito de forma segura. Vale dizer: a criminalização é uma política pública que não atinge o objetivo de reduzir o número de ocorrências. A maneira adequada de lidar com o tema é fazer com que o aborto seja raro, mas seguro.
5.
A criminalização penaliza, sobretudo, as meninas e mulheres pobres, que não podem recorrer ao sistema público de saúde para obter informações, medicação ou procedimentos adequados. As pessoas com melhores condições financeiras podem atravessar a fronteira com o Uruguai, Colômbia, ir para a Europa ou valer-se de outros meios aos quais as classes média e alta têm acesso.
6.
A propósito, praticamente nenhum país democrático e desenvolvido do mundo adota como política pública a criminalização da interrupção da gestação nas primeiras semanas. Isso inclui 39 países europeus e outros pelo globo, como Alemanha, Austrália, Canadá, Dinamarca, Espanha, Finlândia, França, Holanda, Itália, Portugal e Reino Unido. Nos Estados Unidos, a Suprema Corte decidiu que cabe a cada Estado-membro da Federação decidir, sendo que a maioria deles permite.
7.
As mulheres são seres livres e iguais, dotadas de autonomia, com autodeterminação para fazerem suas escolhas existenciais. Em suma: têm o direito fundamental à sua liberdade sexual e reprodutiva. Direitos fundamentais não podem depender da vontade das maiorias políticas. Ninguém duvide: se os homens engravidassem, aborto já não seria tratado como crime há muito tempo.
8.
A tradição judaico-cristã condena o aborto. Deve-se ter profundo respeito pelo sentimento religioso das pessoas. É, portanto, plenamente legítimo ter posição contrária ao aborto, não o praticar e pregar contra a sua prática. Mas será que a regra de ouro, subjacente a ambas as tradições – tratar o próximo como desejaria ser tratado –, é mais bem cumprida atirando ao cárcere a mulher que passe por esse drama? Pessoalmente, entendo que não. Portanto, sem renunciar a qualquer convicção, é perfeitamente possível ser simultaneamente contra o aborto e contra a criminalização.
9.
Em suma: numa sociedade aberta e democrática, alicerçada sobre a ideia de liberdade individual, não é incomum que ocorram desacordos morais razoáveis. Vale dizer: pessoas esclarecidas e bem-intencionadas têm posições diametralmente opostas. Nesses casos, o papel do Estado não é o de escolher um lado e excluir o outro, mas assegurar que cada um possa viver a sua própria convicção.
É como voto.”
***
Na minha opinião, foi um bom voto. Barroso se despediu do STF deixando para trás uma contribuição importante para as mulheres.
E volto a dizer o que escrevi há dois anos, quando Rosa Weber aposentou:
Lula deveria, sim, escolher ministra mulher para o STF.
“É vergonhoso que a mais alta Corte do Judiciário brasileiro só tenha tido três mulheres ministras até hoje (além de Rosa, Cármen Lúcia e a pioneira Ellen Gracie, que se aposentou em 2011).”
Gênero e raça deveriam, sim, ser critérios de escolha, ou alguns dos critérios. Porque é graças à diversidade que podemos aprimorar nossa democracia e nossa justiça social.
Mas, muito provavelmente, Lula deve indicar Jorge Messias, atual advogado-geral da União. Mais um homem branco para a coleção do Supremo.
***
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