Em busca de um final feliz, de Katherine Boo: leia minha resenha do livro

Imagem do lago de esgoto de Annawadi, favela em Mumbai, na Índia, retratada no livro de Katherine Boo. Na foto de Chiara Goia, dois amigos do personagem Sunil.
Imagem do lago de esgoto de Annawadi, favela em Mumbai, na Índia, retratada no livro de Katherine Boo. Na foto de Chiara Goia, dois amigos do personagem Sunil.

Já li vários livros descrevendo situações de miséria no Brasil, e até especificamente nas favelas brasileiras, inclusive escritos por autores que nasceram e cresceram no morro (como Conceição Evaristo, por exemplo). Mas nenhuma miséria se compara à descrita pela jornalista Katherine Boo, que viveu por quase quatro anos junto aos moradores de Annawadi, e resultou num dos melhores livros de não ficção que já li, “Em Busca de um Final Feliz” – também apontado como um dos melhores do século 21.

Annawadi era uma favela a 200 metros da estrada do Aeroporto de Mumbai, na Índia, cercada por hotéis de luxo. Foi criada em 1991 e, quando virou tema do livro de Katherine, tinha 3.000 moradores, dos quais só 6 tinham emprego com carteira assinada. Catar, separar e revender o lixo descartado no aeroporto e pelos ricos dos hotéis era um bom negócio para a maioria. “O esgoto e a doença faziam parte do dia a dia”, descreve a autora. Alguns tinham que fritar ratos e sapos para não morrer de fome, ou comer a grama na beirada do lago de esgoto.

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A experiência de Katherine – que ela registrou em mais de mil horas de vídeos, gravações, fotos e anotações, entrevistas com centenas de pessoas e mais de três mil documentos públicos consultados, além de seu próprio testemunho em muitos momentos – rendeu este livro-reportagem precioso, com histórias reais, de pessoas reais, com seus nomes e sobrenomes verdadeiros, como nenhum outro que já li.

Annawadi, favela próxima ao aeroporto internacional de Mumbai, retratada no livro "Em Busca de um Final Feliz", de Katherine Boo. Foto: Indranil Mukherjee/AFP
Annawadi, favela próxima ao aeroporto internacional de Mumbai, retratada no livro “Em Busca de um Final Feliz”, de Katherine Boo. Foto: Indranil Mukherjee/AFP

Por meio dela ficamos conhecendo, por exemplo, a história de Abdul Husain (para mim, o herói da história), um jovem de idade indefinida que sustenta a família inteira, de 11 pessoas, sozinho, com a separação e revenda de lixo para recicladoras. Quando, a partir desse trabalho extenuante, sua família começa a prosperar minimamente (e estou falando do mínimo, mesmo), passa a ser alvo da inveja e ressentimento das famílias vizinhas, mesclado a ódio religioso, pelo fato de os Husain serem da minoria muçulmana em meio a uma vasta maioria hindu.

A jornalista faz uma narrativa tão detalhada, a partir de todos esses registros, documentos e de sua própria vivência, que se permite até mesmo inserir os sentimentos e pensamentos dos personagens no meio da história. Disso resulta um livro que parece até uma ficção, tamanha a intimidade que nos fornece das histórias daquelas pessoas. Como, por exemplo, ao descrever a agonia de Zehrunisa Husain, mãe de Abdul, vivida nas quatro paredes de seu barraco, e que Katherine só poderia conhecer depois de muito ouvir a própria:

“Zehrunisa voltou para seu barraco e soluçou ainda agarrada ao pano com o qual tinha limpado sua vizinha. Ela não chorava pelo destino de seu marido, de seu filho, de sua filha ou pela grande rede de corrupção que, agora, ela era obrigada a percorrer, ou por um sistema no qual a maioria dos miseráveis tentava punir aqueles ligeiramente menos desgraçados, ao acionar um sistema de justiça tão maligno que os afundava a todos. Ela chorava por algo mais concreto, algo que ela conseguia mensurar, a perda daquela linda manta (…).” (página 145)

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Como esperar que os vizinhos se ajudem numa realidade em que ninguém tem acesso nem aos direitos mais mínimos – como saneamento, água encanada, sistema de esgoto, produtos de higiene, atendimento à saúde, educação básica, segurança pública, emprego…? Numa sociedade massacrada por uma rede de corrupção sistemática, e por um sistema de castas complicado, em que todos esses direitos são sonegados e desviados de milhões, enquanto um só bilionário tem 600 empregados para atender sua família de cinco pessoas?

Como diz Katherine Boo, que venceu o prêmio Pulitzer por seus 20 anos dentro de comunidades pobres em vários lugares, no texto ao final do livro:

“Nos lugares onde as prioridades do governo e os imperativos do mercado criam um mundo tão volúvel que ajudar um vizinho é arriscar sua habilidade de sustentar sua família e, muitas vezes, é arriscar sua própria liberdade, a ideia de uma comunidade pobre que se apoie mutuamente é destruída. Os pobres se culpam uns aos outros pelas escolhas dos governos e dos mercados, e nós, que não somos pobres, estamos prontos a culpar os pobres com a mesma dureza.

É fácil, quando se está a uma distância segura, deixar de lado o fato de que as áreas pobres dentro da cidade são governadas pela corrupção, onde pessoas exaustas rivalizam em um terreno limitado e onde é dolorosamente difícil ser bom. O grande espanto é que, na verdade, algumas pessoas são boas e que muitas tentam ser (…).” [grifos meus]

Sim, boas como Abdul.

A jornalista Katherine Boo, em foto de divulgação
A jornalista Katherine Boo, em foto de divulgação

Terminei a leitura profundamente marcada pelas histórias de Abdul, e também de Sunil, Manju, Asha, Kalu, Geeta, Sanjay, Meena, Fátima e tantos outros. Fiquei com muita vontade de saber o que aconteceu a todos eles desde 2012, quando o livro foi publicado. Teriam conseguido algum pingo de justiça? Algum mínimo de melhora em suas vidas? Ao menos as crianças – “as testemunhas mais confiáveis”, de “olhares atentos e inteligentes”, nas palavras da autora –, ao menos elas?

Será que Abdul conseguiu a justiça que tanto buscava? Conseguiu se tornar gelo e se diferenciar da água suja, que forma toda a matéria humana, como ele mesmo definiu em sua sábia alegoria? Infelizmente não consegui encontrar nenhuma resposta para essas perguntas, nem um contato de Katherine Boo para que eu pudesse perguntar diretamente a ela.

Em entrevista dada à “Folha” em 2013, ela parece um pouquinho otimista sobre ter conseguido ajudar as pessoas de Annawadi:

“O que aconteceu foi que gente das classes mais altas e do governo indiano se assustou, disse que não fazia ideia. E começaram as conversas. Boas coisas aconteceram em todos os níveis a partir dessas conversas. Não é que o livro tenha mudado as coisas instantaneamente, mas acho que houve e há muita gente que se preocupa. Está havendo a discussão sobre o que fazer para que os hospitais tenham remédio, para que as escolas ensinem crianças em vez de apenas dar dinheiro aos políticos.”

Mas, de 2013 pra cá, o que será que aconteceu? E Annawadi, ainda existe ou foi demolida para a ampliação do aeroporto? Que fim levaram seus moradores? Não descobri nada, nada. Minha esperança é que Katherine Boo, que é casada com o indiano Sunil Khilnani, faça uma continuação deste belo livro, trazendo as histórias de vida dessas pessoas nos últimos 14 anos.

Infelizmente, é muito improvável que qualquer um deles tenha algum dia conseguido um “final feliz” – como diz o péssimo nome escolhido para a tradução do livro para o português (o original é “Behind the Beautiful Forevers“). O mais provável é que sigam vivendo em meio à desesperança – ou a baixas expectativas –, como no poeminha maharash que Asha murmurou na página 254:

“Aquilo que você não quer estará sempre com você

Aquilo que você quer nunca estará com você 

Você terá que ir aonde não quer ir

E, quando achar que tem muito mais por viver, então você vai morrer.”

Triste, né? Quando li isso, me deu vontade de me enrolar num cobertor e chorar, como a Asha fez.

Mas torço para que essas pessoas pelo menos tenham conseguido o básico do básico, que lhes era sonegado rotineiramente. Que esta obra literária-jornalística tão potente tenha conseguido mesmo ajudar a mover minimamente as engrenagens de um sistema tão cruel. Como só as boas reportagens são capazes de fazer.

 

Capa do livro “Em busca de um final feliz”, de Katherine Boo.“Em busca de um final feliz”
Katherine Boo
ed. Novo Conceito
287 páginas
R$ 39,90 na Amazon (preço consultado na data do post; sujeito a alterações)

***

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Por Cristina Moreno de Castro (kikacastro)

Mineira de Beagá, escritora, jornalista (passagem por Folha de S.Paulo, g1, TV Globo, O Tempo etc), blogueira há mais de 20 anos, amante dos livros, cinéfila, blueseira, atleticana, politizada, otimista, aprendendo desde 2015 a ser a melhor mãe do mundo para o Luiz. Autora dos livros A Vaga é Sua (Publifolha, 2010) e (Con)vivências (edição de autor, 2025). Antirracista e antifascista.

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