“Ver para escrever é ver de outro jeito”. Assim Annie Ernaux descreve a forma como ela passou a ver a vida dentro de um hipermercado, ao longo de meses, quando ela determinou o objetivo de escrever sobre essa vida.
Sem dúvida, quando a gente vê algo objetivando escrever, depois, sobre ele, vemos com muito mais atenção. Quando vemos um filme ou lemos um livro querendo depois, resenhá-lo para outras pessoas, prestamos mais atenção aos pequenos detalhes, observamos melhor as entrelinhas, as intenções, separamos frases ou cenas que nos impactaram.
O mesmo acontece ao cronista: quando um fiapo de vida chama sua atenção, ele passa a anotar (mentalmente ou não) cada detalhe relevante para descrever aquele fiapo aos outros, inclusive as sensações e pensamentos despertados pela vivência.
Annie Ernaux não costuma ser descrita como cronista. Ela especializou-se (e ganhou um Nobel por isso) em escrever suas memórias, mas de um jeito que extrapola para temas de relevância social mais geral, no que se convencionou chamar de autossociobiografia.
Mas neste livro “Olhe as luzes, meu amor” ela é, pura e simplesmente, uma cronista. Chega a se definir como repórter em dado momento (página 40) – até porque as crônicas são parte de um gênero literário bem próprio dos jornais. A diferença é que as crônicas costumam ser curtas, e este livro tem 71 páginas totalmente dedicadas ao dia a dia dentro de um supermercado da França, o Auchan.
Seria monótono não fossem as observações típicas de Ernaux, em tom quase de relatório, absolutamente detalhistas, mas também, ao mesmo tempo, objetivas e permeadas de algumas reflexões. Ou, o que é mais comum, de espaços para que nós, os leitores, façamos essas reflexões.
Que podem ser sobre o consumismo (a mais comum), a precarização do trabalho, a discriminação em suas várias formas, a escravização, as diferenças de gênero, o mercado como extensão do ambiente doméstico, a solidão e a socialização, a tecnologia e a alienação tecnológica, e até mesmo sobre o fim dos espaços de leitura e de vendas de jornais e revistas (isso lá em 2016).
Separei sete trechos como exemplo dessas oportunidades de reflexão:
São muitos trechos bons, na verdade. Como quando ela diz que os clientes que saem pela porta de quem não comprou nada se sentem constrangidos, porque os seguranças ficam de olho nas mochilas e bolsos para ver se não levaram nada mesmo. Como se já fosse um crime entrar e sair de um supermercado sem comprar nada.
(Quem nunca se sentiu assim, vigiado? Lembro quando eu fazia compras com o Luiz bebê e o segurança do supermercado perto de casa ficava me olhando de forma intimidatória, dando a entender que achava que eu estava usando o carrinho de bebê para furtar algo da loja. Imagino como os clientes negros sofrem ainda mais com isso, já que esse tipo de acusação costuma vir associada ao racismo.)
Em outro trecho, até um pouco engraçado, ela descreve como é uma luta conseguir uma vaga boa no estacionamento, próxima à entrada, ou um carrinho que não fica empenando pra um lado. E, por sua vez, como a gente se sente “sortudo” só de chegar e já encontrar nossa vaga favorita livre, e um carrinho bom.
É curioso como tudo o que ela descreve em um supermercado da França de mais de dez anos atrás é extremamente parecido com o que vivemos em nossos supermercados brasileiros de 2025 (talvez com a diferença de que os caixas de autoatendimento só estejam chegando aqui agora, e lá já eram populares). Talvez ela tenha conseguido a proeza de escrever um livro-síntese do século 21 no mundo ocidental.
Por que os supermercados não seriam um tema digno de literatura?
A autora realmente se debruça sobre TUDO em torno daquele hipermercado, que ela observa e anota em seu diário de tempos em tempos. Ao final, temos não uma crônica, mas uma verdadeira reportagem, com detalhes sobre o preço do estacionamento, das promoções, a disposição das gôndolas, os testes feitos nos equipamentos, o convívio com todo tipo de gente.
Em alguns momentos, esse excesso de informação sobre um foco tão pequeno acabou resultando em inevitáveis repetições. Talvez uma sensação de que ela poderia ter resumido o livro em uma crônica mais curta, afinal. Mas, por outro lado, ela foi ousada na escolha de seu tema. Por que os supermercados não seriam dignos da literatura?, ela se pergunta logo no início.
E ela defende essa escolha:
“Os supermercados e hipermercados não se reduzem à utilidade que têm na economia doméstica, à chatice de fazer compras. Eles despertam pensamentos, gravam sensações e emoções na memória. (…) À exceção de uma categoria restrita da população (…), o hipermercado é um lugar familiar a todos, que frequentamos como um hábito já incorporado à vida, mas sem conseguir dimensionar a importância que ele tem na nossa relação com os outros, no modo como construímos vínculos com nossos contemporâneos do século 21.”
E mais:
“Se pararmos para pensar, não existe outro espaço público ou privado onde se encontrem e convivam lado a lado tantas pessoas diferentes: em relação a idade, renda, cultura, origem geográfica e étnica, aparência. Não existe outro espaço fechado em que cada um se veja assim, dezenas de vezes por ano, diante dos seus semelhantes, em que cada um tenha a oportunidade de vislumbrar o modo de ser e viver dos outros. (…) Em diversos momentos olhei para o hipermercado como um grande encontro humano, como espetáculo.”
Mais do que essa defesa de um tema, que ela faz ainda nas páginas iniciais do livro, a obra inteira comprova esse olhar de Annie Ernaux. Numa sociedade capitalista e consumista, os supermercados são o templo de convívio social mais importante, mais que as igrejas, as escolas, os clubes ou cinemas. Estamos todos ali, entre a subsistência e a hipnose da publicidade e do marketing, navegando por entre aqueles corredores, várias vezes por ano. De novo: por que isso não seria relevante o suficiente para figurar entre as páginas de um livro?
Por tudo isso, “Olhe as luzes, meu amor” é um livreto muito interessante, um dos melhores que li de Annie Ernaux, e muito diferente dos outros que já tinha lido dela, mais focados em sua história íntima e familiar. Vale a pena conhecer.
“Olhe as luzes, meu amor”Annie Ernaux
ed. Fósforo
71 páginas
R$ 53 na Amazon (preço consultado na data do post; sujeito a alterações)
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