Eu não conhecia João Anzanello Carrascoza. E, mais uma vez, aproveitei a melhor vantagem de frequentar uma biblioteca, que é a de poder conhecer autores novos, sem medo de arriscar ou errar.
Lá estava o livro dele, em destaque na melhor biblioteca de BH, onde sempre encontro boas dicas de leitura (foi naquela bancada que descobri, por exemplo, os ótimos “Uma Árvore Cresce no Brooklyn“, “Sabrina” e “Expiração“).
Pois bem, peguei emprestado este “A Vida Naquela Hora“. E foi assim que fiquei conhecendo um dos melhores textos que eu já vi na literatura brasileira.
O livro é curto, com letras em tamanho de fonte generoso. Oito historietas que a gente devora rapidamente, ao mesmo tempo se refreando para não ir rápido demais, porque o texto é muito gostoso de ler.
Sabe um texto fluido? Que passa deslizando suavemente? O autor tem um domínio mágico das palavras, um jeito até de brincar com elas que me impressionou. Vou tentar pescar uns exemplos aleatoriamente (porque não gosto de rabiscar livros, muito menos os da biblioteca):
“ainda não havia sol, era dia apenas dentro dele”
“Saíram da cidade ruidosos, o motor fraturando a quietude das ruas”
“o menino, preso ao cinto de segurança, à esperança e ao espanto de enfrentar o novo (…)”
“Dali, ouvia (…) a conversa das panelas que se tocavam por um gesto distraído da mãe, a voz dela acariciando o cachorro antes de seus dedos percorrerem o pelo suave do animal”
“A casa se espreguiçava, a porta aberta dos guarda-roupas, o aroma forte do café, o movimento de um para cá, outro para lá”
“Ela abriu o assunto, como uma flor, devagar, assim suas palavras, medidas, saíram sem espinhos”
“E, já sem doçura, deixando a unha das palavras à mostra (…)”
“parece fresco o croissant em seu prato, mas só o levando à boca descobrirá seu sabor de ontem”
“Ele, em seu riacho de menino, sabia muitas águas dela”
“Vieram outros dias, tão primeiros quanto esse, de se ajeitar a nova casa (…), até que o costume lhes desse a posse definitiva”
“tudo obedecia ao seu ritmo, os planetas giravam no espaço, a lua ao redor da Terra, os aviões acima das nuvens, e nós ali, vivos, tomando pé do nosso destino”
“é uma limitação minha, não saber expressar o que está aqui dentro, é como se a coisa fosse feita para não ser dita, só para ser experimentada, igual a uma fruta”
“as palavras são como roupas, estão ali só pra contornar o corpo das coisas, a gente quer o que está por trás delas, a gente quer é o miolo”
“a saudade, ou a gente devora, ou ela vai mastigando a gente, devagarinho, até ficarmos tão fracos que nem percebemos o que se passa diante de nós, igual um livro que estamos lendo e, de repente, nos distraímos, e aí quando nos damos conta, estamos umas páginas adiante, deslizamos de uma palavra a outra, mas sem notar os seus sentidos, só escorrendo pelo papel”
Não sei se por esses trechos que pincei deu para perceber a doçura desse livro, e o quanto a narrativa de Carrascoza é poética e delicada.
Outra coisa que as histórias têm em comum é que seus personagens principais quase sempre são crianças (crianças sem nome: o menino, a menina), ou adultos rememorando seus tempos de criança.
Por isso que, como diz o texto da contracapa, são textos que muitas vezes nos fazem refletir sobre as transformações íntimas de cada um, e sobre amadurecimento. Afinal, as crianças estão no estágio da vida de maior efervescência em termos de aprendizado, mudanças e amadurecimento.
No conto “Tango“, por exemplo, o menino descobre as maravilhas da vida na roça, e são muitas as mudanças que esse contato com a natureza provocam nele. Ele se interessa por um cavalo, o Tango, e a liberdade do animal selvagem mexe com ele, tanto quanto vê-lo domesticado, preso às rédeas.
Logo depois, o conto “Ponto colorido“, mostra a surpresa de um menino (o mesmo? Outro? A generalização da infância?) diante de sua primeira tevê colorida, em uma partida da Copa do Mundo. O assombro com que ele descreve o aparelho me lembrou Drummond descrevendo a primeira vez que chupou um sorvete, ou Clarice descrevendo seu contato com um chiclete.
Na história “Sim“, outro menino (ou o mesmo ;)) é interrogado pelos pais, diante do sumiço de um dinheiro.
A história “Ana” é a única em que a criança tem nome. Ela está em uma viagem de trem com os pais, indo visitar a avó doente. Em poucas palavras, o autor nos transporta para o núcleo familiar em meio a muita tensão e conflito, e nos afligimos junto com Ana, em outra descoberta íntima que ela vive.
Em seguida, “Amor-menino” traz a história de um menino angustiado para ajudar a mãe em apuros, depois que o pneu do carro furou.
“Nova casa” é sobre uma mudança de lar, que trará consigo outra mudança radical na estrutura familiar.
“Credencial” é sobre o amor de um filho pelo pai, relembrando seus tempos de criança, e os ensinamentos que o homem simples lhe transmitiu.
E, por fim, “Primeiras Letras” traz o amor do irmão pela irmã, que não se veem há mais de vinte anos. É um monólogo cheio de saudade, de memórias, de afeto de um menino que já não existe mais, só dentro do narrador.
Terminei a leitura de “A Vida Naquela Hora” impactada pela argúcia das palavras de Carrascoza, até pela escolha do título do livro: porque é isso mesmo, são histórias de vida corriqueiras, de coisas que estão acontecendo naquela hora ali, que são sutis, simples, mas capazes de gerar grandes transformações nas pessoas, para sempre.
De forjar seu caráter, sua personalidade, seu senso de honestidade, seu amor pelos outros.
Só depois descobri que o autor, paulista de Cravinhos e professor pela USP, já venceu três vezes o Prêmio Jabuti, o mais importante da literatura brasileira. Merece todos os prêmios!
A Vida Naquela Hora
João Anzanello Carrascoza
Ed. Scipione
119 páginas
R$ 70,83 na Amazon (preço consultado na data do post, sujeito a alteração)
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É um livro para se ler em poucas horas, sem perceber o tempo (passado) passando.
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Verdade!
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Gosto muito da literatura do Carrascoza.
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Adorei conhecê-lo 🙂
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