Filme ‘Zona de Interesse’: nauseante, mas necessário

Cena do filme Zona de Interesse
Cena do filme Zona de Interesse

Vale ver nos cinemas: Zona de Interesse (The Zone of Interest)
2023 | 1h45 de duração | Classificação: 14 anos | nota 7

Já foram muitos os filmes sobre os horrores do Holocausto. Alguns mais gráficos que outros ao mostrar as atrocidades cometidas pelos nazistas de Hitler contra milhões de judeus. Este “Zona de Interesse” se diferencia ao tratar do holocausto, e do maior campo de concentração – de Auschwitz –, mas sem mostrar nem uma única cena de tortura, fome, morte ou aniquilação.

Pelo contrário: na maior parte do tempo, vemos diante de nós uma família vivendo em harmonia, uma vida bem leve, com um jardim florido, joaninhas, abelhas, piscina com escorregador, passeios no lago, piqueniques.

Acontece que esta é a família de Rudolf Höss, que foi o comandante do campo de concentração de Auschwitz, e que morava, literalmente, ao lado dele.

De um lado, o jardim colorido. No meio, um muro. Do outro lado, a barbárie.

De um lado, um pai carinhoso, que contava histórias de ninar para as filhas, que adorava cavalos, parava na rua para fazer cafuné nos cachorrinhos. De outro, o mesmo homem foi o responsável por criar um dos maiores sistemas de aniquilação sistemática de humanos da história.

Vemos ele recebendo outros homens em casa para discutir os crematórios e câmeras de gás que agilizariam o extermínio dos prisioneiros. Vemos ele comandando uma operação que, sozinha, aniquilaria mais de 400 mil judeus húngaros, em menos de dois meses – operação esta que o encheu de alegria por ter sido batizada com seu próprio nome.

Um sujeito cruel.

Mas essa crueldade não é escancarada. Não vemos nenhuma matança. Um desavisado que não conhece a história dos 3 milhões de mortos em Auschwitz talvez nem entendesse, vendo este filme, a perversidade do que estava acontecendo bem ali ao lado daqueles jardins floridos. Não fosse por um detalhe: os sons.

O diretor e roteirista Jonathan Glazer resolveu abrir mão de quase toda a trilha sonora do filme para explorar os sons vindos de trás dos muros. Gritos, tiros, lamentos. Essa decisão gerou um grande impacto – e não à toa o filme acabou indicado ao Oscar na categoria de melhor som.

O filme também concorre em outras categorias importantes, de melhor direção, roteiro, melhor filme internacional e melhor filme do ano. As interpretações do casal protagonista – Christian Friedel e a ótima Sandra Hüller, indicada ao Oscar por “Anatomia de uma Queda” – também são excelentes.

O que me fez tirar três pontos de Zona de Interesse não é culpa do filme em si, penso eu, mas da história que ele retrata, sob a ótica dos lunáticos. Em algumas cenas, foram usadas dez câmeras e até 30 microfones, para capturar toda a movimentação daquela família de perto. Toda a sua rotina plácida e ordinária.

A insensibilidade dos moradores daquela casa colorida, daquela família de sobrenome Höss, diante do extermínio histórico que ocorria ali ao lado (e sob a supervisão direta do chefe da casa), é nauseante.

Assistir a essas quase duas horas de filme foi, portanto, pelo menos para mim, um desgosto perpétuo. Num paralelo mais próximo da nossa realidade, foi como me colocarem para assistir a um reality show com dez câmeras dentro da casa da família Bolsonaro, vendo seus membros fazerem graça dos pacientes com Covid-19 que estavam sufocando sem ar, ou planejando o fechamento do Congresso e a prisão dos ministros do STF para instaurar uma ditadura no Brasil.

ânsia de vômito, como bem mostra uma das cenas do filme.

Isso não reduz a importância de um filme como este, no entanto. Numa época em que as críticas (justas) ao Estado de Israel estão fazendo rebrotar mundialmente o (terrível) antissemitismo, é sempre fundamental relembrar o absurdo que aconteceu durante a Segunda Guerra Mundial.

Höss foi capturado e julgado em 1946, recebendo a sentença de morte em 1947. Durante o julgamento, ele detalhou o que aconteceu naquela época:

“Eu comandei Auschwitz até 1 de dezembro de 1943 e estimo que um total de 2.500.000 vítimas tenham sido executadas e exterminadas lá por gaseamento ou carbonização, e pelo menos outros meio milhão sucumbiram a fome e doença, totalizando 3.000.000 de mortos. Estes números representam um total de 70% a 80% de todas as pessoas envidas para Auschwitz como prisioneiras, o restante foi selecionado e usado como trabalho escravo nas indústrias do campo de concentração. (…) Nós executados cerca de 400.000 judeus húngaros em Auschwitz apenas no verão de 1944.”

Rudolf Höss durante seu julgamento por crimes contra a humanidade, em 1947. Foto de domínio público, tirada da Wikipédia, assim como as aspas contidas neste post.
Rudolf Höss durante seu julgamento por crimes contra a humanidade, em 1947. Foto de domínio público, tirada da Wikipédia, assim como as aspas contidas neste post.

Quatro dias antes de ser enforcado, declarou seu remorso:

“Na solidão de minha cela, eu cheguei ao amargo reconhecimento de que pequei gravemente contra a humanidade. Como comandante de Auschwitz, eu fui responsável por executar os planos cruéis do Terceiro Reich para a destruição humana. Ao fazê-lo, infligi feridas terríveis à humanidade. Causei sofrimento indescritível ao povo polonês em particular. Eu pagarei por isso com minha vida. Que o Senhor Deus me perdoe um dia pelo que fiz.”

A verdade é que é fácil ficarmos apáticos diante de atrocidades e de tragédias. Limparmos a vitrine de um museu, onde milhões de sapatinhos de crianças assassinadas estão amontoados. Vemos isso diariamente, com a banalização de nossas próprias mazelas caseiras. Milhões de judeus foram exterminados nos anos 40, trocentas obras documentaram a crueldade daqueles tempos, mas isso não impediu a extrema-direita de ressurgir com força ao redor do mundo, inclusive pessoas declaradamente nazistas.

Daí a importância de mais um filme que mostra como é fácil automatizar e banalizar e até aceitar os gestos e decisões mais atrozes, que mostra como isso é humanamente possível.

Como foi possível e corriqueiro naquela época e como continua sendo, perigosamente, hoje. E a qualquer tempo.

(E como o remorso chega tarde demais…)

Precisamos nos lembrar do passado, sempre, para que seus piores erros não se repitam nunca mais. E, por isso, filmes nauseantes como este são tão necessários.

‘Zona de Interesse’ foi indicado a 5 Oscars em 2024

E venceu estes 2 em destaque:

  1. Melhor filme internacional
  2. Melhor som
  3. Melhor roteiro adaptado
  4. Melhor direção
  5. Melhor filme do ano

Assista ao trailer do filme ‘Zona de Interesse’:

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Por Cristina Moreno de Castro (kikacastro)

Mineira de Beagá, jornalista (passagem por Folha de S.Paulo, g1 e TV Globo, UOL, O Tempo etc), blogueira há 20 anos, amante dos livros, poeta, cinéfila, blueseira, atleticana, politizada, otimista, aprendendo desde 2015 a ser a melhor mãe do mundo para o Luiz. Antirracista e antifascista.

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