Uma celebração à amizade verdadeira e à vida de Celinho (1953-2021)

Maurinho e Zezé, dois amigos-irmãos. Foto: arquivo pessoal
Maurinho e Zezé, dois amigos-irmãos. Foto: arquivo pessoal

Neste domingo, 2 de julho, completam-se dois anos da morte do José Célio Gabriel Martins, meu sogro.

Ele foi embora em 2021, ainda no auge da pandemia, depois de seis anos de luta contra um câncer que começou na boca e foi se alastrando pelo corpo.

A homenagem mais linda que li para o Zezé – que quase todas as outras pessoas chamam de Celinho – foi escrita por seu grande amigo Maurinho, ainda em 2021.

Resolvi trazê-la aqui para o blog hoje não só para relembrar esta grande figura, pai do Beto Trajano, mas também para celebrar um tipo de amizade muito intenso e comovente, que já parece não existir mais nestes tempos de amigos virtuais.

Se qualquer um de nós terminarmos a vida com um amigo-irmão, como este que Maurinho descreve com tanto carinho, já poderemos nos considerar muito sortudos, considerar que a vida foi um grande privilégio. Ou, como escreve ele, que “os momentos vividos já justificam nossa existência“.

Boa leitura a tod@s!

 


“Celinho, ô velho,

que vazio sua partida deixou nas vidas de todos nós que compartilhávamos de sua companhia, já penalizados com os encontros tão restritos nesses tempos atuais tipo ‘Blade Runner’.

Como nem todos sabem, e sem qualquer sentido pejorativo, velho foi um belo friso que usamos durante um bom tempo para nos cumprimentar, uma carinhosa aplicação de Chico, que a pegou de William Burroughs e trouxe para nossas relações.

Éramos jovens quando nos conhecemos em João Pessoa em 1980, eu com 25 anos e você com 26; as incertezas quanto aos nossos futuros eram muitas, no entanto, já sabíamos bem o que não queríamos para nossas vidas. E desde aquela época, então, se passaram mais de 40 anos de convivência intensa, uma vida marcada pela intimidade, camaradagem e afinidades, de ideias e atitudes; uma relação onde sempre prevaleceu a cumplicidade como valor maior.

Dos dias longos e ensolarados nas praias do Nordeste, do Rio e de Saquarema às noites frias e cosmopolitas de São Paulo; da vida exótica e úmida de Belém às caminhadas pelas ruas de Belo Horizonte, envolvidos durante o dia com o frenesi e as peculiaridades do seu comércio, aconchegados na sua noite vivaz permeada por sombras e segredos, que desvendávamos com prazer indisfarçável; dos cafés prazerosos no Café Nice, na Praça 7, às conversas intermináveis no balcão do bar do Lobão na Savassi, nosso saloon em BH.
Muito tempo, muita informação, muita conversa, muita prosa, muitos risos: muita coisa se passou.

Nessas andanças sem início nem fim, fizemos sempre uma radiografia detalhada do mundo real em seu contexto mais amplo, análises viscerais de tudo que vivemos em nossa volta. Do fim da guerra fria, com as profundas mudanças geopolíticas mundo afora em todo seu contexto, econômico, cultural e social, aos problemas que nos afligiam no nosso cotidiano. Reverenciamos o cinema noir e o cinema em preto e branco, com seus filmes clássicos; nos deliciamos com a cultura underground e com a geração beat, com suas histórias e comportamentos irreverentes; mergulhamos no mundo do rock e vimos seu renascimento depois da explosão do punk.

O bom humor verdadeiramente fascinante e a irreverência sempre presente nas conversas proporcionaram a criação de um vocabulário particular único, pontual e preciso, os frisos, como dizíamos, para definir as pessoas e seus comportamentos, os personagens diante dos fatos.

Tudo que vivemos foi intenso, abrangente. Mas muitas ideias, planos, projetos, mesmo vontades não se concretizaram, por razões as mais diversas. Muitas viagens e aventuras se tornaram apenas cenas de cinema, que não chegaram a ser rodadas. No nosso imaginário, no entanto, não perfeito, mas não tão longe da vida real, viajamos pelo tempo e pela história contemporânea recheando-a com nossas particularidades e devaneios, certezas e dúvidas de todo tipo, quase sempre na companhia de Chico.

Foi assim, de forma virtual, que realizamos muitos de nossos sonhos e desejos: passeamos pelo Central Park e assistimos shows de Lou Reed e Patti Smith no CBGB em New York; fizemos a Rota 66 que vai da Costa do Atlântico à do Pacífico nos EUA; paramos em Salt Lake City para tomar um Jack Daniel’s, ou um Wild Turckey, em um dos saloons da cidade; curtimos blues em Memphis e New Orleans, em performances de bluesmen desconhecidos em bares enfumaçados; assistimos jogo do Boca no La Bombonera e bebemos vinho em bares e praças de Buenos Aires…

Vivemos momentos oníricos com os pés no chão.

Você foi protagonista em todos os momentos da vida, Celinho, um amálgama sem DNA de pessoas que escreveram histórias e mudaram comportamentos, sempre com glamour e empatia, longe dos holofotes:

  • não admitia ser tolhido, em qualquer circunstância, e flertava com a rebeldia e a transgressão com princípios, a la James Cagney;
  • tinha muito de Neal Cassady, o Dean Moriarty de “On the Road”, com sua naturalidade para reverter situações e simplificar as coisas, um propulsor de ações e atitudes, deixando claro que a verdade está sempre na ação;
  • era muito tio Hélio, ou Hélio Silva, para registrar e documentar fatos com sua memória fotográfica e percepção diferenciada;
  • lembrava demais Timothy Leary, com sua inteligência refinada e intuição perspicaz, na agilidade de raciocínio para decodificar as mudanças nos processos de informação e comunicação;
  • era um Keith Richard para ditar a trilha sonora do dia a dia da vida como ela é, da vida real, sem Photoshop, sem purpurinas e serpentinas.

Como disse Beto no dia em que você se foi, valeu demais tudo, Celinho.

Você foi a pessoa que mais me marcou na vida, sob qualquer perspectiva; a convivência com você me permitiu ser Maurinho no lugar do Mauro, assim como você sempre foi Celinho comigo, mais autênticos e verdadeiros. Tudo em nossa convivência foi profundo, profícuo, prazeroso, pleno, passionalmente sensato. Vivemos incontáveis momentos antológicos que, por si só, já justificam nossa existência.

Foi um privilégio imensurável ter podido usufruir da sua convivência por tanto tempo, transcendeu o significado da palavra irmão, em seu sentido mais amplo. Parafraseando uma fala de Ferreira Gullar em um de seus textos, são coisas doidas, mas as lembro com doçura, porque as trago comigo e, em mim, agulha, você é um amigo que continua vivo, olhando o mundo por meus olhos. Rio sozinho quando aparece um friso que sei que achamos a mesma graça e riríamos juntos.

Te amo demais, velho. Mais do que você sabia, mais do que eu julgava capaz.

Maurinho”

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Por Cristina Moreno de Castro (kikacastro)

Mineira de Beagá, jornalista (passagem por Folha de S.Paulo, g1 e TV Globo, UOL, O Tempo etc), blogueira há 20 anos, amante dos livros, poeta, cinéfila, blueseira, atleticana, politizada, otimista, aprendendo desde 2015 a ser a melhor mãe do mundo para o Luiz. Antirracista e antifascista.

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