Eu nunca tinha ouvido falar da alexitimia. Segundo aprendi neste livro “Amêndoas“, trata-se de uma condição neurológica que torna seu portador incapaz de identificar e expressar sentimentos – incluindo alegria, tristeza, raiva ou medo.
O livro diz que a ciência atribui uma das causas dessa doença mental* ao tamanho pequeno das amídalas cerebelosas.

Yunjae, o pequeno herói desta história, chama essas amídalas de “amêndoas”, pela semelhança física entre elas. Ele está com 15 anos quando o conhecemos – e nunca sorriu. Vive de maneira fleumática, impassível, plácida, mas vive bem, cercado do afeto e da preocupação de sua mãe e de sua avó, que o apelidou de “monstrinho” (uma das muitas sutilezas, ambiguidades, ironias e entrelinhas que o garoto é incapaz de interpretar).
Mais tarde, ele conhece Gon, que é percebido por todos ao redor como outro tipo de monstro. O que falta em sentimentos e emoção em um, sobra no outro. O que sobra em afeto familiar para um, sempre faltou ao outro.
As duas histórias se cruzam num momento de muita fragilidade para ambos. E os dois garotos vão se tornando, meio sem querer, amigos. Ainda que o primeiro não saiba o que é o sentimento de amizade e o segundo talvez nunca tenha se aberto para um amigo na vida.
Não quero contar mais sobre este livreto, porque acho que qualquer spoiler estragaria uma história que é muito bem escrita e bem contada pela roteirista e diretora de cinema sul-coreana Won-pyung Sohn. Seu livro é um deleite. Mesmo nos momentos de tragédia, ele é narrado com simplicidade, na voz em primeira pessoa do jovem Yunjae. Vamos percorrendo as páginas com facilidade.

Transformação, mudanças e inclusão
Ao dizer que a narrativa é simples, no entanto, não quero desmerecê-la. A simplicidade desse livro esconde temas poderosos, como o poder que qualquer um de nós tem de transformar vidas que parecem perdidas, especialmente a dos jovens ainda em formação (lembram do filme “Sementes Podres“?).
O livro mostra que o cérebro humano é misterioso, complexo, mas também é simples, porque ele pode ser treinado. Pode se adaptar, mudar hábitos. A palavra-chave, aliás, é mudar. Todos podemos mudar – para melhor ou para pior.
O livro também trata de inclusão. Seu personagem principal, tendo esta condição tão rara, é visto como “retardado” por uns, psicopata por outros, sofre bullying de todos. É superprotegido pela mãe, mas acaba aflorando melhor longe dela (lembram de “Já fui famoso“?).
Vejam este trecho da página 100:
Achei muito lúcido o garotinho com alexitimia descobrindo que o mais difícil não é ser uma pessoa incomum, mas sim ser o dito “normal“. Quem é normal, afinal de contas? Ou, se é, a que custo?
A força da família, do afeto e do amor
Outro ponto abordado pelo premiado “Amêndoas” é sobre estrutura familiar, e o quanto ela é capaz de nos tornar mais fortes, e de facilitar muito esse percurso de uma vida mais tranquila. A própria autora escreve sobre isso nos agradecimentos, ao falar sobre sua própria família amorosa:
“Acabei percebendo que o amor e apoio incondicionais que recebi durante minha adolescência tranquila eram presentes raros e preciosos, que serviram como uma arma inestimável, uma arma que me deu a força de olhar para o mundo de diferentes ângulos, sem medo.”
Enfim, “Amêndoas” é um livro lindo, sobretudo sobre como o amor é capaz de fazer “de alguém um ser humano, assim como o que faz de alguém um monstro”, como descreve a autora.

O garoto Yunjae me mostrou, com toda a sua incapacidade de interpretar sentimentos, o quanto faltam sentimentos neste mundo, mesmo entre os ditos “normais”. O quanto as pessoas estão cada dia mais apáticas, incapazes de sentir qualquer forma de empatia (que dirá amor) pelos outros.
E, quando falo outros, não me refiro apenas às crianças sofrendo com a guerra em um país distante. Nem mesmo às famílias esquálidas pedindo comida no semáforo ali da esquina. Às vezes faltam sentimentos até mesmo em relação aos amigos e parentes, aqui pertinho.
Talvez estejamos todos precisando nutrir nossas amêndoas, afinal de contas. Antes que nos tornemos os monstros que também tentamos evitar.
“Amêndoas”
Won-pyung Sohn
Ilustração na capa: Ing Lee (@inglee)
Ed. Rocco
286 páginas
R$ 46,12 na Amazon
*Alexitimia não é mais considerada doença
P.S.: Escrevi este post e a conclusão acima antes de ver este artigo do Jornal da USP, de março de 2023, que afirma que a alexitimia não é uma doença psicossomática, ou distúrbio físico, como se acreditou por muito tempo. Mas que esta “dificuldade de reconhecer e expressar emoções” está, na verdade, diretamente associada “ao contexto social atual, marcado pela competição econômica e social, empobrecimento da linguagem oral e escrita, mentalidade racionalizante e crescente sofrimento cotidiano”.
Ou seja, assim como eu havia apenas deduzido, estamos, sim, sujeitos a nos tornarmos todos incapazes de identificar nossas emoções – se não nos atentarmos para isso:
“a alexitimia e o pensamento operatório (…), na verdade, são construções sociais, tipificações, formas emblemáticas do nosso tempo”, disseram os autores.
Que tempos…!

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