Não faz tanto tempo assim. Era possível ver uma turma de crianças e adolescentes, sempre a mesma turma, jogando bola no meio da rua Coletor Celso Werneck, hoje uma das mais movimentadas do bairro Santo Antônio, Centro-Sul de Belo Horizonte. Passavam tão poucos carros que as crianças não se incomodavam em demarcar o gol com os chinelos, que elas moviam a cada vez que um motorista resolvesse dar as caras por ali. E havia o senhor que cuidava da pracinha perto da padaria. E a banca de revistas da Creusa, onde os vizinhos de bairro trocavam figurinhas (às vezes literalmente). Eram muitas as casas, em sua maioria antigas, com moradores também antigos, do tempo em que a Fafich, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, ainda funcionava ali perto.
O romantismo se foi com o tempo. O lote vago que deixava ver a lua nascendo deu lugar a um prédio imenso, com apartamentos na casa dos milhões. E três casinhas consecutivas, da rua Rafael Magalhães, foram vendidas a um total de R$ 4 milhões, para dar lugar a outro futuro prédio, este com 17 apartamentos. Sobraram as ruínas das casas, em pleno processo de demolição por uma máquina-monstrengo, que assusta aos moradores de sono leve, trepidando de madrugada, quando é permitido trafegar.
Enquanto as casinhas vão dando lugar a um largo lote, que faz esquina com a rua Quintiliano Silva, e pedras e mais pedras rolam das antigas paredes e muros, uma flor vermelho-rosada, resistente, continua de pé na calçada em frente.

A flor chama a atenção de quem passa por ali, naquele bairro que já teve tantas flores e tantas árvores, nos jardins de tantas casas, e hoje tem que se contentar com recuos obrigatórios para imensos condomínios, gradeados, cercados de eletricidade, com porteiros que não dizem mais bom-dia, porque nem sequer podem mostrar o rosto atrás dos vidros escuros.
Foi esta flor que chamou a atenção de Etelvina, uma portuguesa de 68 anos, que os jornais insistem em chamar de “idosa” (palavra que cabe no título), quando não “aposentada”, que morava no prédio logo em frente.
Ela viu a flor e pensou, certamente: vai morrer. Vai morrer, junto das casinhas do Santo Antônio. É resistente a danada, mas, se não morrer, será morta, porque não combina com a nova construção, modernosa, cheirando a flores de plástico (“as flores de plástico não morrem”).
Os jornais disseram que ela ia arrancar a flor para replantar a mudinha. Pode até ter sido, mas não pela ganância dos amantes das flores, que as querem em seus jarros e saem furtando as plantações dos vizinhos, mas muito mais pelo gesto nobre de salvar a plantinha. Infere-se isso pelo fato de que, na jardineira do próprio prédio onde morava dona Etevilna há dezenas da mesma flor, das quais ela poderia ter arrancado um pedacinho da batata, a fim de replantar.
O fato é que, como agora sabem, Etelvina queria salvar a flor. E assim, na última sexta, munida de uma tesoura, dirigiu-se, convicta, até ela. Levantou a fita amarelo-e-preta que a cercava, indicando o perigo da obra, pensando, sem dúvida, que em poucos segundos nada de ruim poderia lhe acontecer — ainda mais enquanto estivesse ali para salvar uma espécie tão bela, que poucos sabem como chama!
Antes que pudesse, porém, arrancar o caule teimoso, a máquina de demolição arrancou um pedaço do muro, também obstinado, que caiu sobre Etelvina — e arrancou um pedaço de sua perna, e toda a sua vida.
Embora a história seja trágica e, com certeza, muito triste para os parentes e amigos de Etelvina, foi uma das mortes mais singelas de que já ouvi falar. A flor não morreu. Quem morreu foi Etelvina — e a flor continua vivinha da silva, fincada no mesmo lugar, à espera da boa vontade dos futuros donos daquele novo arranha-céus (de raízes bem mais fortes).




Notícias sobre a morte de Etelvina:
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Pois é, Cris. O Santo Antônio mudou tanto, com tanta gente nova desde que para aqui mudamos há 20 anos, que ninguém mais conhece os vizinhos. Só depois da morte de dona Etelvina, que tem um nome comprido de portuguesa de boa cepa – lá no meio do sobrenome extenso tem até um Castro! -, é que soubemos que a vizinha era aquela que víamos de vez em quando na rua, sempre de chapéu de palhinha, passeando com um cachorro. E que ela se cuidava muito, fazendo ginásticas no Minas, e se preocupava com o marido que não demonstrava a mesma atenção com saúde. Ela, como se vê, morreu certamente sem esperar, mas por uma boa causa..
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Nem sempre dá pra evitar a morte só com cuidados, né…
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Nem sempre dá pra evitar a morte só com cuidados, né…
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Parabéns pela singela, porém excelente matéria, Cris.
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Brigadinha, Rick 😀
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Cris, cheguei agora, no meio de um escarafunchamento internético, achei seu blog. E estou chocada e tocada pela história. Obrigada por escrevê-la.
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Obrigada por lê-la e me fazer relembrar a história de dona Etelvina. Um abraço e volte sempre! 🙂
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