Dona Bárbara, de Rómulo Gallegos: leia minha resenha do livro

Capa do livro Dona Bárbara, de Rómulo Gallegos, pela editora Pinard
Capa do livro Dona Bárbara, de Rómulo Gallegos, pela editora Pinard

Demorei bem umas 90 páginas para começar a engatar na leitura de Dona Bárbara. No começo, estranhei muito o vocabulário, cheio de termos regionalistas da Venezuela (o livro é lotado de notas de rodapé), e a narrativa, com frases longas, muito floreadas, cheias de adjetivos.

Mas, aos poucos, fui entrando na atmosfera do llano venezuelano, termo que aparece o tempo todo e foi mantido do original, por escolha do tradutor André Aires, que explica no texto de apresentação (páginas 9 e 13):

“uma das primeiras, e mais importantes, decisões a serem tomadas para encontrar o tom desta tradução de Dona Bárbara passava necessariamente por uma das palavras que mais se repetem ao longo do texto: o llano. Percebemos no romance que, mais do que um simples “plano”, essa região extensa de vegetação herbácea, muito típica na América do Sul, especialmente nas terras baixas que beiram o rio Orinoco, de importância fundamental para a economia pecuária da Venezuela, o llano é também uma sorte de signo tipificador, um arquétipo do nacional, uma nota cultural que não caberia no pé da página.

Em Dona Bárbara, o llano é espaço, ambientação e personagem, tem nome próprio e personalidade peculiar: é o lugar indômito da solidão embrutecedora, da saudade impotente, da barbárie natural e social. (…)

Não se tratando apenas de uma planície ou do ainda menos específico “campo”, assim como os llaneros não são só camponeses ou sertanejos, e a llanura não é simples sinônimo ou característica do llano, mas uma sensação inerente daquele que se vê só, abismado pela região onde se divisa a longínqua linha do horizonte, de qualquer ponto em que se esteja e para onde quer que se olhe, o llano e seus derivados foram mantidos no idioma original, por homenagem e respeito a essa identificação do homem com a terra que não se traduz em palavras, ainda menos de outro idioma.

Em português, a palavra “lhano” significa esse ecossistema de topografia extensa e plana, mas também se refere ao que é sincero, cândido, franco, despretensioso e leal.” (grifos meus em negrito)

À medida que fui lendo, fui percebendo que o verdadeiro protagonista deste livro não é Dona Bárbara, nem tampouco o herói Santos Luzardo. É, justamente, o llano. A paisagem inóspita e cheia de selvageria e brutalidade, mas também de melancolia e solidão, que mexe com a mente e os sentimentos dos homens que lá vivem – e que é fundamental neste livro que tem uma visão determinista e naturalista, em que o meio pode moldar a sociedade que está inserida nele.

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Foi só depois que terminei o livro que voltei ao começo para ler o prólogo escrito em 1954 pelo autor Rómulo Gallegos (tenho mania de só ler os prólogos no fim, para fugir de eventuais spoilers). E lá ele confirma minha impressão de que o llano é o protagonista do livro, quando diz:

“E com efeito, já tinha [personagem principal para o romance]: a paisagem llanera, a natureza brava, forjadora de homens duros.”

E ele traz uma explicação que ainda não me havia ocorrido sozinha. Dona Bárbara, a “devoradora de homens”, nada mais é que um símbolo da “natureza brava” do llano. Bonita, como a llanura. Não à toa com este nome: bárbara.

Na página 352, já perto do fim do livro, já havia uma pista disso, quando o narrador onipresente diz:

“não foi talvez tanto dona Bárbara quanto a terra implacável, a terra brava, com sua solidão embrutecedora (…), e ele também já havia começado a se afundar naquele outro atoleiro da barbárie, que não perdoa os que mergulham nela. Ele também já era uma vítima da devoradora de homens.”

Dona Bárbara era, ainda, segundo o autor, um símbolo do que acontecia na Venezuela no campo político. Naqueles anos de 1920, quando a obra foi escrita, o país vivia uma ditadura. Estava economicamente próspero, por causa do petróleo, mas a sociedade era violenta. O ditador, que prometeu civilizar o país, acabou agravando a barbárie.

Bárbara. Barbárie. Essas palavras são constantes no livro, e dão um segundo sentido ao título, depois que passamos a entender melhor esse contexto histórico. O tema principal do livro é justamente essa tensão entre civilização e barbárie, honestidade e corrupção, humanidade e selvageria.

Dona Bárbara é uma personagem baseada em uma figura real, assim como Lorenzo Barquero, Maria Nieves, Antônio Sandoval, Pajarote e Carmelito. Quem conta, de novo, é o autor, em seu prólogo. Já os personagens mais desprezíveis da história, como Pernalete, Balbino Paiba, Encantador e Mujiquita, são inspirados em anônimos que personificam a tragédia Venezuela, conforme o autor. Personificam a corrupção, a violência, a brutalidade. Como tantos que existem também aqui no Brasil.

Os heróis Santos Luzardo e Marisela, por sua vez, são “pura invenção de romancista”. Invenção útil, eu diria, para além da historieta de amor, por ajudar a criar a eterna tensão entre a Venezuela real, do coronelismo bandido, e a que poderia ser, das leis respeitadas e cumpridas, das punições diante dos crimes, de respeito, educação e cortesia.

O livro tem todos esses personagens interessantes, assim como cenários que nos transportam de cabeça para a zona rural daquele país, para as lendas, as superstições, as vaquejadas, os rodeios, os jacarés, as cavalgadas. Depois que engrenei na história, ainda que tenha demorado no início e continuasse sofrendo um pouco em algumas partes, me vi presa ao destino daquele povo llanero.

“O llano é tudo isso: imensidão, bravura e melancolia”, descreveu o autor em seu prólogo. E eu, desde o cerrado mineiro, a 7.560 quilômetros de distância do Arauca, sem nunca ter pisado na Venezuela e sem nunca ter lido outro autor daquele país antes, pude sentir e entender o llano, quase 100 anos depois que esse clássico da literatura latino-americana foi escrito.

Isso é a mágica da literatura. Mas também é a conexão e as similaridades únicas deste continente que compartilhamos.

***

P.S. Este livro, escrito em 1929, chegou ao Brasil pela tradução de Jorge Amado em 1940. Depois da segunda edição revisada, de 1970, ele desapareceu do mercado editorial brasileiro, sendo agora ressuscitado pela editora Pinard, com esta nova tradução, em 2025. Ele será discutido hoje à noite, no clube do livro de que participo 🙂

Capa do livro Dona Bárbara, de Rómulo Gallegos, pela editora PinardDona Bárbara (capa dura)
Rómulo Gallegos
Ed. Pinard
392 páginas
R$ 80,01 na Amazon (preço consultado na data do post, sujeito a alteração)

Como comprar o livro de crônicas (Con)vivências, de Cristina Moreno de Castro, do blog da kikacastro.

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Por Cristina Moreno de Castro (kikacastro)

Mineira de Beagá, escritora, jornalista (passagem por Folha de S.Paulo, g1, TV Globo, O Tempo etc), blogueira há mais de 20 anos, amante dos livros, cinéfila, blueseira, atleticana, politizada, otimista, aprendendo desde 2015 a ser a melhor mãe do mundo para o Luiz. Autora dos livros A Vaga é Sua (Publifolha, 2010) e (Con)vivências (edição de autor, 2025). Antirracista e antifascista.

1 comentário

  1. Também demorei para ler o livro que me foi emprestado pela Cris. Edição primorosa. Fiquei com vontade de ler a tradução de Jorge Amado. É estranho que ela tenha desaparecido do mercado.

    Faltou na resenha dizer quem foi Rômulo Gallegos. No Prólogo, de que fala a Cris, sabe-se que ele foi escrito pelo autor em 1954, como esclarece uma nota de rodapé, quando Gallegos estava exilado no México. Ele escreveu o Prólogo ao fazer uma revisão comemorativa dos 25 anos da primeira edição do livro.

    Gallegos nasceu em 1884 e morreu em 1969. Na década de 1920, a Venezuela se tornou o maior exportador de petróleo do mundo. Político de destaque, Rômulo Gallegos chegou a presidir o país por alguns meses, até ser derrubado por um golpe militar. Como se sabe, o mundo gira.

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