- Texto escrito por Cristina Moreno de Castro
Vencedor do renomado Prêmio Goncourt, “Velar por ela“, de Jean-Baptiste Andrea, é um livro bonito, bem escrito, com uma história bem amarrada e personagens interessantíssimos. Daquele tipo que a gente lê rápido e, ao mesmo tempo, fica evitando que chegue ao fim, com dó de acabar.
Começa em 1986, quando o protagonista Michelangelo Vitaliani, o Mimo, está morrendo, aos 82 anos, em seu quarto numa abadia isolada da Itália. A história desse fim de vida é narrada em terceira pessoa. Os irmãos que o cercam ficam ansiosos para tentar entender o que o enfermo está querendo dizer.
“Claro que estou tentando dizer alguma coisa.” A partir dessa frase, que abre o segundo capítulo, passamos a ouvir com mais frequência a voz narrativa em primeira pessoa de Mimo. Que passa a relembrar sua história, desde que nasceu, em 1904, até esse ciclo de 40 anos de clausura antes de sua morte.
Estamos falando de um garoto que ficou órfão de pai quando criança, que foi (de certa forma) abandonado pela mãe e passou a viver com um escultor alcoólatra e violento que sempre teve uma espécie de asco dele – desde o primeiro momento em que o viu, na verdade, e achou que um aprendiz “nanico” seria só um estorvo.
Nanico porque Mimo nasceu com acondroplasia, a forma mais comum de nanismo – ele era popularmente (e pejorativamente) chamado de “anão”. Essa condição genética seria decisiva em sua vida, e apareceria em vários momentos importantes do livro.
Por exemplo, quando, mesmo já consagrado como escultor, Mimo sofreria de uma espécie de síndrome do impostor. Pensaria às vezes que só era tolerado nas altas rodas da sociedade porque não o enxergavam, olhavam por cima de sua cabeça.
Mas, me desculpem, estou entregando parte do ouro da história antes da hora. Como eu ia dizendo, Mimo relembra sua saga, de 1904 a 1986, e tudo o que aconteceu não só com ele, o escultor em formação, mas também com a Itália – com duas guerras mundiais, os campos de concentração, a perseguição aos judeus, a ascensão e a queda do fascismo. Um país fragmentado, também ainda em formação.
O livro vai costurando esses relatos, entremeando personagens reais (como Mussolini e Fra Angelico) a uma penca de personagens fictícios e fantásticos, que incluem uma ursa, um aspirante a papa, prostitutas, bêbados degenerados, vigaristas, um cantor de ópera, um carteiro que adora uniformes, uma princesa sérvia, marqueses, padres e, claro, a garota que queria voar.
Essa garota é Viola, personagem que só vai aparecer pela primeira vez na página 60, mas que se torna, rapidamente, o centro da história (ou o centro da vida de Mimo?).
Viola é magnética, genial, excêntrica, instável, tem uma memória que nada esquece, sabe os nomes de todos os ventos, e sonha alto, sonha em ser uma Marie Curie ou alguém do mesmo naipe. Ela tem consciência de que os livros e o conhecimento são uma ferramenta importante para tentar alcançar esses sonhos, principalmente numa sociedade que vê as mulheres como seres inferiores e incapazes.
Seu jeito de pensar é bem traduzido neste trecho da página 377, quando ela defende ser diferente das outras pessoas por ver os significados das palavras:
“– Tramontana, siroco, libécio, poente e mistral. Não é tão difícil! (…) São apenas cinco ventos que sopram por aqui. (…) As palavras têm significado, Mimo. Nomear é entender. “Tem vento” não quer dizer nada. É um vento que mata? Um vento que semeia? Um vento que congela as plantas ou as aquece?”
Cada vento é único, nos ensina Viola.
Mais do que uma personagem, ela é um símbolo, uma representação de todo o gênero feminino, que passou boa parte do século XX sendo reprimido, tendo as asas podadas (às vezes literalmente). Talvez por isso mesmo ela tenha se identificado com um garoto que também havia nascido “pela metade”. E desse encontro surgiu uma amizade improvável, forjada em um cemitério, e que ajuda a construir todo este livro cheio de reviravoltas e de vaivéns.
Porque, como bem diz Viola, as pessoas não deveriam ser limitadas pelas fronteiras, sejam elas de estatura, de riqueza ou de gênero:
“– (…) Eu queria mostrar que não há limites. Não existe alto ou baixo. Grande ou pequeno. Toda fronteira é uma invenção. Quem entende isso sempre incomoda os que inventam essas fronteiras, e mais ainda os que acreditam nelas, ou seja, praticamente todo mundo. (…) Você sabe quando está no caminho certo, Mimo, quando todos dizem o contrário.” (Páginas 133/4)
Claro, nem sempre é assim, na História real. Muitas pessoas que pensavam como Viola foram chamadas de loucas, bruxas, revolucionárias, criminosas. Foram presas ou assassinadas. Ou foram desprezadas, atacadas, discriminadas – como a “anomalia” a que Mimo se refere na página 380:
“Ou então, a expressão de uma normalidade que ainda não havia acontecido, o arauto de um mundo em que as pessoas como ele teriam voz”.
Mas também houve os que, depois de apanhar em praça pública, resolveram se vingar superando seus algozes. Como disse Mimo na página 107:
“Não é impossível que eu deva minha carreira, no fundo, ao fato de ter mostrado minha bunda a Pietra d’Alba.”
Estas aventuras de Mimo e Viola, apesar de todas as dificuldades, são prazerosas de acompanhar, passam velozmente, remetendo a outras boas histórias, como “Cemitério de Praga“, de Umberto Eco, e “O Bom Ladrão“, de Hannah Tinti. São realmente fáceis de nos prender, devido ao suspense criado pelo autor.
Vou dar um exemplo. Ainda no início do livro, na página 33, lemos que a cidade de Savona deu à Itália dois papas, Sisto IV e Júlio II, e que Pietra d’Alba, meros 30 km ao norte, onde se passa a história de Mimo, quase lhe deu um terceiro. E aí o narrador, ainda um adolescente, afirma: “Creio ser um pouco responsável por esse fracasso.”
Fiquei encucada em boa parte do livro com esse enigma: como aquele garoto pobre e solitário poderia influenciar a história do papado? Mas essa charada só é explicada nas últimas páginas – mais precisamente, na 410.
Outro exemplo. Na página 220, Mimo encerra um capítulo dizendo: “Parti sem saber que levaria mais de cinco anos para voltar. Ou melhor, mil novecentos e noventa e um dias e dezessete horas, pois não voltei em uma data qualquer”. Ficamos com aquele osso atravessado na garganta, que só vai ser decifrado 20 páginas adiante.
Assim é o livro: um amontoado de pequenos mistérios, fora o grande mistério, que nos assombra de vez em quando, no cenário da abadia isolada, da Pietà que é trancada e não pode ser vista por ninguém. Aquela que é velada desde o título da obra…
Apesar de tanto a ser decifrado, o autor não se perde. As respostas aparecem, as explicações são boas, e são convincentes (exceto por uma, que deixei para o P.S., para quem já leu o livro ou não se importa com spoilers).
“Velar por ela” é um livro sobre as aventuras pessoais do escultor fictício Mimo, mas também sobre as aventuras da humanidade na história sanguinolenta do século XX, sobre política, feminismo, traição, culpa e arrependimento, sobre escolher o lado certo diante de atrocidades – sobre saber tomar partido. E sobre um tema mais prosaico, mas não menos importante: a amizade.
Todos esses temas, aliás, têm uma coisa em comum: não são nada simples. Não são previsíveis, lineares. Contêm curvas e complexidades, são interrompidos por catástrofes, por imprevistos. Como nos faz refletir este trecho da página 252:
“O vento se levantou, levando os últimos fragmentos de névoa. Mas que vento? O siroco? O ponte, o mistral, o grego? Ou talvez outro, que eu não conhecia porque ela não tinha me ensinado? (…) o que há de simples em um mundo onde o vento tem mil nomes?”
Eu também me pergunto, Mimo. O que pode haver de simples neste mundo onde até o vento tem mil nomes?
“Velar por ela”
Jean-Baptiste Andrea
ed. Vestígio
414 páginas
R$ 58 na Amazon (preço consultado na data do post; sujeito a alterações)
P.S. Aí o spoiler prometido: nas páginas finais do livro, Mimo diz que a fissura na cúpula da igreja havia sido um sinal para o grande terremoto que veio depois. E que um cientista, ao ler sobre ela nos jornais, havia escrito para o prefeito do vilarejo para alertá-lo. Mas que uma parte de Mimo acredita que esta carta possa ter sido roubada da bolsa de carteiro de Emmanuele, quando este foi enforcado. Ora, como isso é possível, se ele foi enforcado, depois os criminosos foram justiçados, depois o caso foi discutido na igreja e só depois disso tudo é que a fissura apareceu? Este foi o pequeno momento em que flagrei o autor se perdendo. Mas irrelevante para o todo.
P.S. 2. Este livro será discutido hoje, a partir das 19h, em mais um encontro do Clube do Livro do Centro Cultural Unimed-BH Minas. Mal posso esperar! 😀
Leia as resenhas de outros livros já discutidos no clube do livro:
- Dentes, de Domenico Starnone
- Coelho Maldito, de Bora Chung
- A Fábrica, de Hiroko Oyamada
- Caderno Proibido, de Alba de Céspedes
- A Contagem dos Sonhos, de Chimamanda Ngozi Adichie
- Setembro Negro, de Sandro Veronesi
➡ Quer reproduzir este ou outro conteúdo do meu blog em seu site? Tudo bem!, desde que cite a fonte (texto de Cristina Moreno de Castro, publicado no blog kikacastro.com.br) e coloque um link para o post original, combinado? Se quiser reproduzir o texto em algum livro didático ou outra publicação impressa, por favor, entre em contato para combinar.
➡ Quer receber os novos posts por email? É gratuito! Veja como é simples ASSINAR o blog! Saiba também como ANUNCIAR no blog e como CONTRIBUIR conosco! E, sempre que quiser, ENTRE EM CONTATO 😉
Descubra mais sobre blog da kikacastro
Assine para receber nossas notícias mais recentes por e-mail.




